
Papa Francisco fez nesta viagem ao Canadá um ‘mea culpa’ pelos abusos cometidos no passado: também aqui a Igreja esteve mais a funcionar como o mundo, e isso não é bom. Foto © Vatican Media.
A recente visita do Papa Francisco ao Canadá (que ele designou como “peregrinação penitencial”) e o seu pedido desculpas pela colaboração de filhos da Igreja no sistema de internatos que visava a destruição da cultura e assimilação forçada dos jovens indígenas desse país suscita várias reflexões, entre elas a seguinte:
No seu discurso às autoridades civis, aos representantes das comunidades indígenas e ao corpo diplomático, de 27 de julho, afirmou, a propósito, o Papa: «É trágico quando crentes, como sucedeu naquele período histórico, se adequam mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho.» Na verdade, o sistema em causa foi implantado pelas autoridades civis da época, a quem cabe a sua responsabilidade primeira (facto que nem sempre é tido em conta), as quais delegaram na Igreja Católica e noutras comunidades cristãs a tarefa educativa a ele associada. Correspondia à mentalidade corrente da altura. Este facto poderá atenuar a responsabilidade moral de quem com ele colaborou, mas não exclui a sua nítida contradição com os princípios evangélicos. Salientou, a este respeito, o editorialista do portal Vatican News Andrea Tornelli que, em contextos semelhantes, também houve quem desafiasse essa mesma mentalidade corrente e a ela antepusesse as exigências do Evangelho, indicando os exemplos do jesuíta Matteo Ricci na China (cuja ação de verdadeiro diálogo de culturas tem sido reconhecida por governos chineses) e das reduções do Paraguai (retratadas no célebre filme A Missão).
A lição que deste exemplo pode retirar-se é a da importância de resistir ao “espírito do tempo”, à cultura dominante numa determinada época, quando esta contrasta com o Evangelho e outras fontes da Revelação. A fidelidade ao Evangelho exige, muitas vezes, caminhar “contra a corrente” ser “sinal de contradição”, como fizeram, desde logo, os primeiros cristãos. Para obter mais facilmente a compreensão e os aplausos do mundo, não há que fazer compromissos a este respeito. Jesus não prometeu aos seus discípulos que eles receberiam esses aplausos, pelo contrário…
Diferentes do “espírito do tempo” – também já o afirmou o Papa Francisco – são os “sinais dos tempos”, a que se referem os documentos do Concílio Vaticano II, que não substituem as fontes da Revelação ou a contrariam, mas colocam em relevo alguns dos seus aspetos. Também o desenvolvimento, ou aprofundamento, da doutrina perene da Igreja, que não se confunde com ruturas e contradições, se guia sempre por um objetivo de cada vez maior fidelidade à Revelação (é sempre esse o parâmetro a ter em conta), não pela adaptação à mentalidade corrente (de resto, sempre volátil e transitória).
Estas considerações são oportunas no atual contexto da vida da Igreja. Em meu entender, e no entender de bispos que sobre isso se pronunciaram (designadamente, os polacos e os dos países nórdicos), as conclusões do Caminho Sinodal alemão incorrem nesse erro: o de rejeitar os aspetos da doutrina e disciplina da Igreja que mais contrastam com a mentalidade corrente (porventura com a ilusão de que assim se evita o abandono de muitos fiéis, que comungam dessa mentalidade). Muito especialmente, esses aspetos relacionam-se com a ética sexual, radicalmente posta em causa.
É, na verdade, uma ilusão pensar que seja esse o caminho para evitar a debandada de fiéis. As propostas do Caminho Sinodal alemão, de verdadeiramente novo, nada têm. Foram já, algumas desde o início, outras mais recentemente, mas já há bastante tempo, seguidas em várias comunidades protestantes (por isso, disse, a propósito, o Papa Francisco, com ironia, que não é necessária outra Igreja evangélica alemã). E não foi isso que fez encher as suas igrejas. Antes pelo contrário. De entre as comunidades evangélicas de todo o mundo, são as que mais resistem ao “espírito do tempo” as que crescem numericamente. Também na Comunhão Anglicana, profundamente dilacerada (ao ponto de justificadamente se temer um cisma) devido à questão da aprovação das uniões homossexuais, são as comunidades do hemisfério sul, que resistem a esse espírito, as únicas que crescem numericamente.
O desafio para os cristãos é, então, o de «estar no mundo sem ser do mundo», partilhar as «alegrias e esperanças» dos homens e mulheres de hoje, mas ter a coragem profética de uma «voz que clama no deserto» e dizer o que, porventura, mais ninguém diz.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz