
Um grupo de participantes do MAGIS pinta as paredes do centro de apoio a imigrantes do bairro da Fonte da Prata, na Moita. Ao centro, de camisola amarela, está Erick, que veio da Guatemala. Foto © Ponto SJ.
Erick senta-se num dos bancos da Escola Básica de Alhos Vedros, no bairro da Fonte da Prata (Moita), olha para as mãos pintalgadas e sorri, num misto de embaraço e orgulho. Já não sabe se são restos de tinta das paredes do centro de apoio a imigrantes que ajudou a pintar no dia anterior ou se dos desenhos que fez com as crianças do ATL nessa manhã. Seja como for, aqueles traços coloridos trazem memórias felizes a este jovem da Guatemala e são o mote para nos dizer, quase em jeito de confissão, que os dias que está a viver ali no bairro, no âmbito do encontro mundial de jovens jesuítas que precede a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e que se intitula MAGIS (advérbio em latim que significa “mais, maior”), fazem jus a esse nome: para ele, são mesmo “mais importantes que a própria Jornada”, na qual também irá participar.
“A Jornada é uma grande festa, e fazer parte dela é uma experiência fantástica, sem dúvida, mas aqui é onde encontramos verdadeiramente Deus”, assegura. Erick Contreras, 24 anos, já tinha sentido isso no Panamá, em 2019, quando participou pela primeira vez numa JMJ e no MAGIS que a precedeu. Nessa altura, estava no primeiro ano do curso de Engenharia Informática e “muito, talvez demasiado, focado nos estudos”, recorda. Mas como a universidade que frequentava era jesuíta, Erick foi, à semelhança dos restantes colegas, desafiado a participar no encontro e na Jornada. Um amigo que queria ir insistiu com ele para o acompanhar. “No final, ele não foi e fui eu, um pouco a medo, sem conhecer ninguém. Mas valeu a pena: foi transformador. E logo ali, juntamente com os novos amigos que conheci, fizemos a promessa de que viríamos a Lisboa. Todos cumprimos!”, diz com um sorriso de satisfação.
Quando regressou à Guatemala após a Jornada, Erick fundou um grupo de Comunidade de Vida Cristã com outros jovens, “para poder continuar a crescer na fé, através da oração, da amizade e do serviço aos outros”, que ainda hoje se mantém. Entretanto, concluiu a licenciatura e começou a trabalhar como desenvolvedor de software, mas vir a Lisboa era uma prioridade, por isso tirou férias para poder estar nesta pré-jornada de dez dias, que trouxe a Portugal cerca de dois mil jovens ligados à Companhia de Jesus, vindos de 82 países.
Seis dias de “experiências MAGIS”

O encontro começou no passado sábado, 22 de julho, com todos os participantes reunidos na “Vila MAGIS”, instalada no colégio São João de Brito, em Lisboa. A partir de lá, foram enviados, na segunda-feira, em grupos de 20 a 30 jovens, para todas as dioceses de Portugal e algumas zonas de Espanha, com o objetivo de viverem seis dias de “experiências MAGIS”.
Nestas 80 experiências (51 em Portugal e 29 em Espanha), “o objetivo é envolver os peregrinos de uma forma simples num contexto concreto e local, fomentando a criação de comunidade, com o foco numa de cinco dimensões, que os jovens tiveram a oportunidade de escolher: Ecologia e Meio Ambiente; Fé e Espiritualidade; Arte e Cultura; Peregrinação e Caminho; ou Solidariedade e Serviço”, explica a organização.
Assim, enquanto um dos grupos vai neste momento a caminho de Fátima em bicicleta, outro está em Lisboa a descobrir a profundidade da oração através do corpo e da dança, e outros ainda estão a cuidar da “Casa Comum” através de ações ambientais na praia ou na floresta, entre muitos mais desafios.
No sábado, 30 de julho, os cerca de dois mil peregrinos regressam a Lisboa para os últimos dias do MAGIS, em que partilharão entre si as experiências que viveram, participarão em vários workshops e serão enviados para a Jornada Mundial da Juventude, que começa no dia 1.
Ninguém vem salvar o bairro

Erick optou por uma experiência de “Solidariedade e Serviço” e por isso o encontrámos, juntamente com outros 23 jovens vindos da Argentina, Colômbia, Brasil, Uruguai, El Salvador e Portugal, no bairro da Fonte da Prata. Mas só quando ali chegou soube qual seria a missão do seu grupo: integrar a comunidade que ali vive, composta por cerca de cinco mil pessoas, e colocar-se ao serviço, quer ajudando a recuperar espaços comuns degradados, quer visitando pessoas doentes ou com pouca mobilidade, e também desenvolvendo atividades lúdicas com as crianças e jovens de famílias carenciadas.
“Queríamos trazer um bocadinho da Jornada para aqui, a este bairro que é tão periférico, mas sobretudo que esta fosse uma experiência de encontro e não que os jovens viessem com aquele espírito de que quem aqui vive é um coitadinho e de que eles vêm para salvar o bairro”, sublinha Luís Vaz Pinto, um dos coordenadores da experiência.
Luís, 29 anos, trabalha como analista financeiro e também ele tirou férias para poder acompanhar estes jovens durante uma semana, além das muitas horas que dedicou à organização desta experiência desde que, em outubro do ano passado, as irmãs da Congregação das Escravas do Sagrado Coração de Jesus – que há mais de 30 anos desenvolvem projetos no bairro e que colaboraram com os jesuítas na organização do MAGIS – lhe lançaram o desafio.
E basta andar com ele durante uns minutos pelas ruas do bairro para perceber porque o fizeram. “Luíiiiiiiiiisssss!”, gritam as crianças assim que o vêem, correndo para ele, que distribui “cincos” e abraços a todos. Uma menina de dez anos faz questão de anunciar alto e bom som: “Ele é o meu bestie!”, que é o mesmo que dizer “melhor amigo”: E logo a seguir toca-lhe o telemóvel: é a D. Judite, uma senhora de 70 anos que vive ali no bairro sozinha e que, sabendo da presença dos jovens, pergunta se não os pode levar lá a casa para lhe fazerem um bocadinho de companhia.
Luís, que durante dois anos fez parte de um grupo de voluntários que uma vez por mês visitava os doentes e idosos do bairro e organizava atividades com as crianças, diz logo que sim. E, de repente, a sala da D. Judite, onde passa a maior parte do tempo sem companhia desde que, há dois anos, o marido faleceu, enche-se de jovens à volta da mesa. Erick é um deles, e faz questão de provar um bocadinho de todos os bolos que a D. Judite oferece, ou não tivesse ela sido pasteleira, como logo a seguir lhes explica.

“Bebam um suminho e comam mais”, insiste, enquanto lhes satisfaz a curiosidade sobre a receita dos pastéis de nata e dos travesseiros de Sintra, lhes fala de como ia a Fátima todos os anos com o marido, e lhes mostra as fotografias dos sobrinhos.
É por momentos como este que Erick diz que, passados apenas três dias, já se sente “em casa”. “O facto de as pessoas mais velhas nos abrirem assim as portas, cozinharem para nós, o convívio com os jovens e as crianças… tudo isto está a provocar em mim uma nova transformação”, reconhece. E diz que até já tomou uma decisão: quando regressar à Guatemala, vai arranjar forma de trabalhar mais diretamente com jovens. “Sinto que Deus me chama a isso”, afirma.
Formar-se para servir também no regresso a casa

Foi precisamente em atividades com os jovens que a colombiana Juana Gallo, 19 anos, passou a tarde, enquanto Erick e outros peregrinos visitavam os idosos. No terreno junto aos dois pré-fabricados onde funciona o TASSE – um projeto das Escravas do Sagrado Coração de Jesus que visa travar o abandono escolar – fizeram jogos, dançaram, cantaram e lancharam juntos.
No final do dia, quando chegou à Escola Básica de Alhos Vedros, que durante esta semana é a casa destes participantes do MAGIS, Juana partilhou: “Eu entrei neste bairro a ser uma pessoa, e passados dois dias já tinha consciência de que nunca mais iria ser essa pessoa. As experiências que se vivem, os encontros interculturais, intergeracionais… permitem ver realidades muito distintas, e em todo o tempo estarmos a ver a Deus, que por vezes é difícil de encontrar na nossa vida quotidiana.”
Surpreendida ao perceber que, num “país supostamente desenvolvido, há pessoas a viver exatamente os mesmos problemas que nos países mais pobres da América Latina”, a estudante de Ciência Política sente que esta experiência veio reforçar a sua vontade de mudar o mundo para melhor e provar-lhe que os jovens têm de facto a capacidade de o fazer.
“Até porque eu vim a Portugal, não só para a Jornada, mas com o objetivo de me formar para servir quando voltar ao meu país”, diz, acrescentando que o encontro com o Papa é uma maneira de ser Igreja, talvez a mais tradicional, mas partilhar a vida e servir com aquilo que somos também é ser Igreja, talvez a mais importante e decisiva”.
“Um milagre a acontecer”

As partilhas de Erick e de Juana, com tanto em comum, enchem de alegria Raquel Gomes, uma das portuguesas que também integra o grupo e que, por ter crescido ali no bairro, ajudou a preparar esta experiência.
Com 21 anos e a tirar a licenciatura em Sociologia, Raquel lembra-se bem de quando, não há tantos anos assim, frequentava, ela própria, o TASSE. “Os meus pais, que vieram da Guiné Bissau em 1998, saíam todos os dias de madrugada para trabalhar, e foram as irmãs Escravas que, com este projeto, me proporcionaram a mim, aos meus irmãos e a tantas crianças da Fonte da Prata, novas experiências e horizontes, que sem elas não teríamos tido”, sublinha.
O facto de jovens de outros países se virem juntar, por uns dias, às irmãs “não podia ser mais positivo”, assegura Raquel. “São caras novas, vêm de coração aberto… Trazem alegria e o espírito certo, que é o de entrar nesta comunidade prontos a dar aquilo que têm e que possa fazer falta, mas também dispostos a receber, com humildade, o que quem cá está tem para lhes dar. E sei que vão sair daqui diferentes, renovados”, conclui.
Como dizia o padre Miguel Almeida, provincial dos jesuítas portugueses, no primeiro dia do MAGIS, este encontro é “um milagre a acontecer. Num mundo com tanto ódio, tantas guerras e tantas injustiças, estamos a dizer que partilhar a vida juntos é possível.” E acrescentava: “já estamos a criar um futuro cheio de esperança!”. Erick olha de novo para os restos de tinta nas suas mãos e atreve-se a corrigir: “Nem sequer é um futuro, é mesmo já o presente que nós estamos a transformar”.