[não virá esta noite
– estás de esperanças?
oh, vem criança manhã!]
Haicai e fotografia © Joaquim Félix

Foto © Joaquim Félix
1. Oferece a cidade parábolas para entender o tempo presente?
Sim, muitas. São como sinais a ler, e a reler, para nos lermos.
Se andarmos atentos como Jesus à sua quotidianidade,
as parábolas hão de saltar para os olhos e os ouvidos
a cumprir a atenção, o estilo de vida em espera incessante.
O Teatro Nacional S. João convidou Gábor Tompa,
encenador, cineasta, poeta e professor romeno-húngaro,
para levantar (encenar) a peça de teatro «À espera de Godot»,
escrita pelo dramaturgo irlandês Samuel Beckett.
E teve a dita ‘oferecer’ esta peça à cidade de Braga, no Theatro Circo,
neste «tempo-charneira da nossa vida em comunidade» (Fátima C. Silva, [Cad.], 27).
2. Claro que, como bem escreve Mário Santos, no mesmo Caderno,
«Godot é o que nós quisermos». E mais:
«Godot é, talvez, a nossa esperança,
seja ela palpável ou totalmente fictícia» (Cad., 31).
É bom partir das obras que são ‘prismáticas’, não é?
São como as estrelas que moldamos com os brilhos.
Ainda assim, neste princípio que era, e continua a ser, dúvida,
para mergulhar uns instantes, talvez noturnos,
«na aridez cínica e pragmática de Beckett» (Rodrigo Santos),
gostaria que frequentássemos uma passagem do texto, escrito por Tomás Maia, intitulado
«A ocasião do Ocidente [Beckett e a verdade ocidental]»,
para quem, relendo o aforismo 125, de Nietzche, em A Gaia Ciência, escreve:
«A arte é uma luz de presença na noite infinita» (Cad. 36).
3. «Há assim duas maneiras, pelo menos, de ler À espera de Godot,
as quais coincidem com as duas formas de habitar o extremo da nossa história:
ou desesperamos – porque se vai ao encontro de quem nunca virá –,
ou aceitamos doravante a pura espera
– porque se vai ao encontro do que nunca cessa de vir. Ou soçobramos no desespero,
ou começamos a acolher a esperança» (Cad., 38-39).
Tomás Maia não nos deixa prisioneiros no dilema do «ou»,
porque abre a possibilidade de avançar além do «pelo menos».
Na admirável densidade teológica que os seus textos têm,
possibilita a travessia, pela ‘ponte em parábola’, à boleia com Godot,
para os textos que hoje ouvimos na liturgia da Palavra.
4. Cercados pelas circunstâncias atuais, que depõem o Ocidente, podemos desesperar como o rei Acaz,
ao ver Jerusalém cercada por Rezim, rei da Síria, e Peca, filho de Remalias.
– Acaz não se abriu sequer ao desejo de pedir um sinal de esperança –.
Ou, então, podemos acolher a criança como sinal,
cujo nome o profeta Isaías adianta: «Emanuel».
Imensa era a geografia possível para os sinais, das profundezas às alturas!
E, todavia, sufocou-se Acaz nos escombros do medo, na pretensa moléstia.
5. Muito tempo depois, o sinal do profeta concretiza-se,
como ouvimos do evangelho segundo São Mateus (cf. Mt 1,18-24).
É fácil fazer uma leitura tipológica, na base do cumprimento,
entre o ‘sinal’ da profecia da virgem a dar à luz
e a sua ‘concretização’ em Maria e Jesus, dela nascido.
Sim, em «Jesus»: Aquele que salva o seu povo dos pecados!
Embora Mateus seja o único evangelista a acrescentar este particular,
– porque escreve o seu Evangelho a partir da dinâmica do perdão –,
podemos admirar-nos com o modo de Deus se fazer connosco!
6. O caminho dos sinais, e da experiência como encontro, não é de acesso fácil,
tão-pouco para José, ‘homem justo’, tantas vezes representado nas ‘natividades’,
de cabeça ‘pesada-de-pensar’ sobre o bastão, a seguir o fiel,
a baloiçar pendularmente entre o secreto repúdio e o perdão.
Ou, como no filme dirigido por Pier Paolo Pasolini,
«O Evangelho segundo Mateus»,
no qual José é tocado por silêncios que o anjo enche de reverberações.
7. O anjo do Senhor abre-nos os olhos e os ouvidos a outros anjos.
Ou, será sempre o mesmo? O anjo do sonho, do sono, da manhã…
Na peça de teatro «À espera de Godot»,
o anjo é uma criança, aliás bem o recorda Tomás Maia:
«todos os anjos são crianças» (Cad., 39),
andem eles de bicicleta (cf. ‘l’ange à vélo’ de Arcabas),
ou poisem sobre o nosso presépio ou naqueloutro da Praça de S. Pedro no Vaticano,
que veio de Sutrio, província de Udine, região do Friuli
(presépio de «ecologia integral», segundo Tony Neves).
A sua mensagem, na peça de teatro como nas Escrituras,
vem a ser esta, nas palavras de Tomás Maia:
«O Ocidente (a “humanidade inteira”) talvez não saiba, mas está de esperanças» (Cad., 39).
8. E prossegue o autor, no texto que aconselho a ler:
«Continuamos à espera de nada ou de tudo:
do ser que nos venha dizer “amanhã”, que venha a ser o amanhã» (Cad., 39).
Curioso que, na reta final do Advento,
há um conjunto de antífonas, iniciadas por Ó, com títulos de Jesus,
cuja primeira letra de cada uma, na ordem inversa, em latim,
forma a expressão: «Ero Cras», «amanhã estarei» ou «virei amanhã».
Talvez Beckett conhecesse este acróstico.
Na sua peça, é a criança que, do último para o primeiro dia, anuncia e vem a ser o «amanhã».
Segundo o acróstico litúrgico, é o próprio Jesus que,
na véspera de nascer, caída a noite, diz: «Virei amanhã».
Jesus também poderia dizer, abrindo o latim: «Serei o amanhã».
9. «Será chamado ‘Emanuel’, que quer dizer ‘Deus connosco’» (Mt 1,23; cf. Is7,14).
‘Connosco’ pode ser visto, ainda, na dinâmica do encontro,
a revermo-nos nas palavras de Vladimir, ditas a Estragon: «Ou que a noite caia. (Pausa.)
Estamos no ponto de encontro, e é tudo.
Não somos nenhuns santos, mas estamos no ponto de encontro. Quantas pessoas podem dizer o mesmo?».
Também a nós não falta agora uma «imensa confusão», c
omo a Vladimir e a Estragon, a S. José, ou a S. Paulo, que, no meio da sua grande saudação escreve:
«Ele é Jesus Cristo, Nosso Senhor» (Rom 1,4)
Não estamos à espera de Godot, que não veio,
mas de Jesus, que nos sai de encontro.
É verdade, podemos dizer a Vladimir, a Estragon, a quem nos oiça: «Agora Ele vem ao nosso encontro,
em cada humano e em cada tempo,
para que O recebamos na fé e na caridade
e dêmos testemunho da gloriosa esperança do seu reino» (Prefácio I-A do Advento).
10. Ele vem como o mais frágil dos seres, ― um rebento no mistério,
sempre como novidade amanhecente… auroral.
Vladimir e Estragon «são apenas dois vagabundos que personificam o comum dos mortais.
E tudo fazem, en attendant, para preencher a espera ― aparentemente não fazendo nada. (…)
‘Nada a fazer’ (resposta de Estragon) significa que nada ― o nada (nihil) que é o humano ― tem de ser feito.
Que o nada está por fazer (à faire): por ser criado e recriado.
E que essa é a tarefa ou o assunto (affaire) humano infinito, a ser cuidado à desmedida da noite infinita:
criar (poien) a partir do nada que somos» (Tomás Maia, Cad., 40). Não será, então, nosso desejo que a noite caia?
Pois então! E que o desejo seja, neste nada a fazer, a nossa oração; quem o sugere é Santo Agostinho:
«O teu desejo é a tua oração» (Dos Comentários aos Salmos: In PS. 37).
11. Rodeados por tantos sapatos, temos nossas botas por descalçar! Onde colocá-las?
Esta breve passagem da peça sugere-nos um ‘ali’: «Vladimir: Que estás tu a fazer?
Estragon: Esgotado, exangue. Vladimir: Hã?
Estragon: De trepar aos céus e contemplar quem aqui somos. Vladimir: As botas. Que estás tu a fazer com a botas?
Estragon: (Virando-se para contemplar as botas.) Vou deixá-las ali. (Pausa.)
Outro virá, tal como… Tal como… Como eu, mas com os pés mais pequenos, e elas enchê-lo-ão de felicidade».
12. Senhor, ainda com a sugestão no pensamento,
permiti que esta oração seja feita de um poema de Samuel Beckett,
descalços e com nosso desejo a cumprir-se na espera incessante:
«noite que tanto faz/ implorar a aurora/ a graça da noite/ caia agora».
Senhor, Amanhã criança, estamos de esperanças, grávidos!
Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais Triságia. Este texto corresponde à homilia da missa de domingo passado, IV Domingo de Advento no calendário católico.