Estrangeiros em nossa casa

| 17 Set 2023

Tenda

“Abraão é desafiado a deixar a sua terra e a casa de seu pai, para ir viver como errante numa tenda. Tenda como lugar do efémero e do provisório, aludindo à sua vocação de viajante e buscador, que se deixa desinstalar e parte na expectativa do encontro.” Foto © Vwalaktyea / Freepik

 

O substantivo casa é abundantemente usado como sugestiva imagem por diversas religiões. Casa como símbolo do cosmos, isto é, da ordem cósmica. O Egipto construiu túmulos em forma de casa, aludindo ao significado de última morada do homem. O budismo remete para o corpo-casa, sugerindo que o corpo é abrigo da alma. (Cfr. Dicionário de símbolos)

O judaísmo usa profusamente esta imagem nas mais variadas situações. Abraão é desafiado a deixar a sua terra e a casa de seu pai, para ir viver como errante numa tenda. Tenda como lugar do efémero e do provisório, aludindo à sua vocação de viajante e buscador, que se deixa desinstalar e parte na expectativa do encontro. Casa como lugar de hospedagem (Gn 19, 2-3), ou como sugere o livro dos Provérbios, um ninho para se aninhar (Pr 27, 8), ou ainda como diz Ben Sira, lugar da privacidade e da intimidade (Sir 29, 21). A casa entendida como lugar espiritual, da casa de pedra para o templo celeste. Salomão ora ao Senhor, para que esteja presente na casa por ele edificada, sabendo, no entanto, que o Senhor não pode ser contido nos céus dos céus, menos ainda no templo por ele edificado (2 Rs 8, 27).  

Casa sugere também relação e missão. Vemos isso, em especial, no nome de terras: Belém (casa do pão), Betel (casa de Deus), Betânia (casa dos[para] os pobres, remetendo cada qual para uma razão de ser e existir.

O cristianismo, filho do judaísmo, trilha também este caminho. A sua expressão máxima acontece quando o Verbo se fez carne e veio habitar connosco (Jo 1, 14). Será o Verbo de Deus que anunciará que na casa de seu Pai há muitas moradas (Jo 14, 2), casa que faz manifestar o seu zelo (Jo 2, 15-16), porque lugar em que devia estar e permanecer (Lc 2, 49).

A casa é para Jesus lugar de encontro, convívio e conversa. Não tendo casa para reclinar a cabeça (Lc 9, 58), aceita agradado o convite dos que o convidam (Lc 5, 29; 7, 36; 10, 38), como também não hesita fazer-se convidado (Lc 19, 5). Esta sua disponibilidade e vontade de estar com as pessoas no seu habitat natural vale-lhe o epíteto de glutão e bebedor de vinho (Lc 7, 34; Mt 11, 18).

É na casa e em casa que vivemos as experiências mais marcantes e díspares na vida. Se ela é lugar caloroso, de aconchego e de afeto, também é lugar de tensão, conflito e discórdia. Nela sorrimos e choramos, porque nela abraçamos e somos abraçados, mas também, somos afugentados, separados e divididos. A casa é espaço aberto, de acolhimento, virado para a vizinhança, vinculando-nos na interdependência, ou então, pode ser transformada em espaço fechado, refúgio narcisista de “apartamento” (apartado dos outros), de costas viradas que nos mergulha na autossuficiência.

A casa dá-nos identidade e referencia-nos, torna-nos pessoas (ser em relação) ou pode fazer de nós meros indivíduos (virado para si), mas será sempre epifania de uma personalidade, seja ela aberta ou fechada.

É fulcral perceber como cada um se identifica com a casa edificada, que casa deseja, que casa pode construir e como pode construir (que materiais pode usar).

De uma forma um pouco forçada e talvez abusiva, vou usar o termo e conceito de casa como analogia da Igreja. Não pretendo referir-me à igreja (templo), mas à Igreja (comunidade de crentes que professam um credo, com todas as consequências que isso acarreta para a vida).

Falar de Igreja é falar de Povo de Deus, embora este esteja para lá daquela, porque o Povo de Deus não cabe na Igreja, nem sequer em todas as Igrejas que viram a luz do dia, porque está para lá das suas fronteiras e existe para além delas, das Igrejas. Também são Povo de Deus todos os que não se identificando e não se sentindo pertença de uma comunidade eclesial, são, no entanto, eternos buscadores do sentido último da existência, procurando, sem cessar, o encontro com a ternura e o carinho do coração amoroso e de paz de Deus.

A comunidade eclesial católica ganhou um novo fulgor em torno da noção de Povo de Deus com o Concílio Vaticano II, depois de tantos séculos de desprezo por esta categoria fundante do que é ser Igreja. Foi reabilitado o termo Povo de Deus, mas parece existir, novamente, a tentativa de o enfraquecer, esgotando-o em meros formalismos circunstanciais de conveniência, fazendo tábua rasa das verdadeiras consequências e alcance que tem este conceito.

A Última Ceia de Jesus celebrada também com mulheres, na visão do polaco Bohdan Piasecki (1998).

“Entender a Igreja como casa, conduz, inevitavelmente, à questão de como os seus membros experimentam a vida familiar que ela é chamada a proporcionar a todos.” Pintura: A Última Ceia de Jesus celebrada também com mulheres, na visão do polaco Bohdan Piasecki (1998).

 

Um brevíssimo excurso pelo Evangelho de João ajuda-nos a entender que a “Ekklesia” é, antes demais, Povo de Deus, sem hierarquias ou clivagens de ofício ou cargos. Esses nasceram posteriormente, por conveniência ou sedes de poder.

  • “Fazei o que Ele vos disser!” (Jo 2, 5)
  • “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz! Não será Ele o Messias? (Jo 4, 29); Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4, 42)
  • “Sim, ó Senhor; eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus que havia de vir ao mundo” (Jo 11, 27)
  • Dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus de pé, mas não se dava conta que era Ele. (Jo 20, 14); foi e anunciou aos discípulos: «Vi o Senhor» (Jo 20, 18)

Estes textos têm em comum serem vividos por mulheres, que estabeleceram com Jesus um vínculo tão estreito, que as conduziu a uma relação de tal modo íntima, que fez delas discípulas e apostolas do reino. Não há apenas relação umbilical, há também relação ontológica. Não se tornam, deste modo, «alter-Christus»? Não foram, também elas, mandatadas a partir de um vínculo sacramental? Não são estas mulheres agentes do agir «in persona Christi»?

Maria, Mãe de Jesus, usa o mesmo imperativo de Jesus na última ceia fazei (Jo 2, 5); a Samaritana (uma mulher sem nome, mas com identidade geográfica e histórica), após a conversa com Jesus, vai falar aos seus conterrâneos acerca do homem com quem conversara, interrogando-se se seria ele o Messias (Jo 4, 29), os seus vizinhos virão a acreditar, não já pelas palavras daquela mulher, que foi a primeira a falar-lhes de Jesus, mas porque eles próprios fazem a experiência da intimidade com Jesus (Jo 4, 42); João coloca na boca de Marta a bela profissão de fé:Sim, ó Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que havia de vir ao mundo(Jo 11, 27), que Mateus tinha colocado na boca de Pedro (Mt 16, 14-16); na alvorada daquele dia transformador do curso da história, uma mulher que se atreve a adentrar na escuridão da noite, torna-se a primeira a contactar com o ressuscitado e a sua primeira testemunha, simplesmente, porque é destemida, por isso diz com propriedade Vi o Senhor (Jo 20, 18).

Entender a Igreja como casa, conduz, inevitavelmente, à questão de como os seus membros experimentam a vida familiar que ela é chamada a proporcionar a todos.

Como se sentirão as diversas gerações e os variados géneros? Como é que a família se organiza e quais as suas prioridades? Onde está a primazia, assente no chefe da casa, o pai de família, ou na corresponsabilidade compartilhada, numa relação horizontal? O que se valoriza mais, a dimensão institucional, formal e normativa ou o sadio ambiente familiar, despretensioso e espontâneo?

A Igreja-casa é e será um ambiente complexo pela diversidade e proveniência dos seus membros, no entanto, essa diversidade não deve ser causa de despotismo ou tirania, mas de enriquecimento de todos, na busca incessante de equilíbrios e harmonia.

Na Igreja-casa há tensão, conflito e desilusão, não deve haver é desistência nem abandono, rejeição ou aniquilamento.

A Igreja-casa não é uma comunidade a preto e branco, mas uma comunidade dinâmica, com avanços e retrocessos

A Igreja-casa há de ter consciência que os principais laços não são os de sangue, mas sim os dos vínculos espirituais, porque se nasce daquela fonte que regenera e introduz num novo modo de viver. Estes nascem da água e do espírito que os une e dá identidade. É uma ligação a outro nível e num outro plano, que transcende e referencia todos.

 Que casa e família é a Igreja, quando a maioria dos seus membros está privada de ser tudo ou exercer todos os ministérios existentes no seu seio? Que família é esta que só permite que alguns dos seus vejam reservado para si a presidência ou a consagração do pão? Não parece que a comunidade do evangelista João estivesse organizada desta forma tão seletiva.

 Será que este modo de organizar a “ekklesia” não é um modelo esgotado? Porque se teme uma mudança estrutural, onde uma parte substancial se deixe de considerar estranha e estrangeira dentro da sua própria casa? Porque não se ousa experimentar um novo modelo, seja ele organizacional, litúrgico ou catequético?

Que nos terá acontecido, para vivermos com alguma letargia, o esvaziamento das comunidades cristãs?

Que apatia tomou conta de nós, para termos deixado de lutar pelas pessoas das nossas comunidades?

 

António Ribeiro está aposentado e é cristão católico; contacto: amvribeiro@sapo.pt

 

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