O 7MARGENS termina com este texto a série de artigos da autoria de Carlos Pinto de Abreu (advogado) e José Verdelho (jurista) sobre a história do islão e as suas implicações no direito. No texto anterior os autores focaram-se nas Fontes normativas e conceito de lei, centrando-se este sexto e último artigo na estrutura e evolução do direito muçulmano.
Características estruturais específicas

A corte de Abd al-Rahman III, oitavo Emir de Córdova e, posteriormente, primeiro califa da Andaluzia. Pintura de Dionísio Baixeras Verdaguer (1862–1943). Universidade de Barcelona.
O direito muçulmano é de base pessoal e não de base territorial. Não é de aplicação estadual, mas obriga todos os que reúnam um elemento comum, a fé individual; e aplica-se à comunidade dos crentes. Pormenorizemos:
- A Lei aplica-se ao muçulmano, tomado como tal. Não releva, portanto, a pertença a um grupo social determinado ou a estada num qualquer estado muçulmano. A lei muçulmana obriga ainda em consciência, quando este se encontra num país não submetido à jurisdição islâmica.
- A Lei islâmica é por natureza inaplicável àqueles que não acreditam no Deus único, pois não reconhecem a autoridade do legislador. Não podem, na perspectiva inversa, reclamar a sua protecção. Devem submeter-se à autoridade divina na medida do necessário, sendo colocados numa posição de inferioridade jurídica ou quase incapacidade.
- O direito de aplicar as leis pertence à comunidade (umma) que o exerce por intermédio de um representante eleito (posição controversa entre as diversas correntes), o califa, tomado como simples mandatário, submisso à Lei tal como outro muçulmano e não sendo titular de nenhum dos atributos da soberania.
Referimos já que das fontes primárias não é possível retirar imediatamente uma teoria geral de direito. Falam assim alguns autores no carácter empírico (casuístico entendemos nós), destas fontes porque as soluções apontadas não dependem da formulação prévia de princípios gerais, mas aferem-se em função do caso concreto.
Outra característica específica é a do pluralismo. Desde os primórdios do sistema jurídico desenvolveram-se diferentes escolas ou correntes cujas doutrinas são ainda reconhecidas. Por razões históricas, sobreviveram apenas quatro escolas de ortodoxia islâmica, cada um com diferentes técnicas e conceitos jurídicos. Por isso é legítimo dizer, não que existem muitas correntes doutrinárias, mas sim diferentes sistemas jurídicos de base muçulmana, cada qual reivindicando a sua autonomia.
Dissemos atrás que o sistema islâmico era na sua essência um sistema de deveres e obrigações. Pressupõe-se, ainda que implícita, a noção de relação jurídica. Que dizer então sobre a concepção de direito subjectivo? O direito subjectivo é visto como um poder que assume diversas formas de acordo com as suas possibilidades de alienação ou transmissão (mais um corolário da base pessoal). Não existe, pese tudo um critério unânime de classificação.
A distinção de base pode colocar-se entre os direitos de um indivíduo e os direitos de Deus. Há direitos que pertencem à comunidade dos crentes e que se opõe aos direitos individuais. O exemplo clássico não difere do tradicionalmente considerado nos sistemas romanísticos – a atribuição do direito de propriedade não inclui o exercício abusivo dos poderes em que o mesmo direito se exprime.
Evolução (remissão)

Questões que ficam por reflectir, pontos nem ao de leve tocados são todos aqueles que, como dissemos ao iniciar as reflexões neste ponto, se ligam ao estudo da ordem objectiva (leia-se objectivada), à sua vigência e coercibilidade (exemplo disto mesmo é o sentido de fonte de direito adoptado – fonte em sentido filosófico ou metafísico e não fonte em sentido técnico-jurídico-formal).
Se se seguisse outra orientação que não a tomada teríamos necessariamente de abordar temas como o da importância histórica e actual (e nisto reside em grande parte a razão do conflito permanente entre sunitas e xiitas) da interferência da autoridade na legiferação. Ou o do recurso ao estratagema jurídico, à ficção…
Teríamos também de nos debruçar sobre o facto da decadência das jurisdições tradicionais (o desaparecimento da competência dos qhâdis – única jurisdição fundamental), ou sobre o importantíssimo e curioso, porque original (que saibamos não tem precedentes se bem que como lugar paralelo possamos referir o efeito da legalização formal – “muitas leis pouco direito”), fenómeno do desenvolvimento anormal da regulamentação administrativa (qânon).
No âmbito de uma comparação com o direito ocidental seria imprescindível referir o posicionamento dos vários países islâmicos em relação aos direitos de matriz romano-germânica ou aos direitos assentes na tradição da common law, ao que René David chama de “ocidentalização do direito” (v.g. os casos do Egipto e da Turquia).
Mas esses são outros temas de discussão e uma outra linha de abordagem e de evolução.
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Carlos Pinto de Abreu é advogado; José Verdelho é jurista. O texto foi actualizado a partir da versão original, elaborada em 1987 para o XXIII Encontro Europeu de Universitários e publicado depois numa compilação de artigos em memória do Padre Joaquim António de Aguiar que foi director do Colégio Universitário Pio XII: “A Difícil Contemporaneidade da Concepção do Direito no Islão” in Educação e Cidadania, Lisboa, Almedina, 2017, pp. 163 a 200. A edição final e alguns títulos e subtítulos são do 7MARGENS.