“Da imagem” é o tema do colóquio anual que a Sociedade de Filosofia Medieval organiza a partir desta quinta feira, 7 de setembro, na Universidade da Beira Interior, na Covilhã, presidido pelo professor e filósofo José Maria da Silva Rosa.
A iniciativa, que reúne especialistas de diferentes disciplinas das humanidades, oriundos de universidades portuguesas, espanholas e da América Latina, compõe-se de três conferências plenárias e 14 sessões temáticas de apresentação e debate de comunicações nos dois primeiros dias e uma visita guiada a Belmonte, no sábado.
O texto abaixo foi escrito para enquadrar o encontro e dar uma visão panorâmica das problemáticas que o tema cobre. O autor chamou-lhe “breve mural”, feito para “inspirar e incitar” a participação no encontro. Lendo-o, facilmente se detetam as filiações de problemáticas culturais e religiosas que, surpreendentemente, ou talvez não, continuam a aflorar na atualidade. Por isso, com autorização do autor e presidente do Encontro, aqui o disponibilizamos aos leitores do 7MARGENS.

Hildegarda de Bingen, Liber Divinorum Operum, Biblioteca Governativa di Lucca – Codex Latinus 1942 fol-1v.
Há muitas razões para revisitar positivamente a Idade Média partindo do tema da Imagem. Nela, como noutras épocas, aliás, a relação entre o visível e o invisível, entre aquilo que se pode ou não pode figurar, entre o que se revela e o que se esconde, é uma questão cultural, cultual, religiosa, teológica, antropológica e filosófica de primeira grandeza, como também tantas obras e representações artísticas sobre este período mostram (literatura, pintura, música, cinema, etc.). De facto, a própria Idade Média declina a Imago (originalmente, o molde ou o retrato em cera do rosto de um defunto) numa profusão de múltiplos registos: iluminuras, pinturas, (formas planas, picturae;cenas narrativas pintadas,historiae) em frescos, em estátuas (sculpturae), capitéis, baixos-relevos, em imagens mentais (phantasiae, phantasmata), etc.



Para dar alguns exemplos, como não referir desde logo a concepção bíblica do homem criado ad imaginem et similitudinem Dei(Gn 1, 26-27) presente na antropologia de todos os autores medievais? (aprofundando-a os Padres da Igreja, especialmente Agostinho, como imago Trinitatis). E, no outro extremo da Bíblia, a forte pressão que o Livro do Apocalipse exerceu na rêverie escatológica medieval? Ou ainda, e não obstante a pesada afirmação de Platão de que “as imagens são a destruição da inteligência” (Rep. X, 595 b), como deixar de referir a noção neoplatónica de hierarquia celeste,cristianizada pelo autor do Corpus Areopagiticum, que tantas consequências teve quer na mimese eclesiológica quer na imagética teológico-política medieval? E como não recordar que o Império Romano do Oriente, depois do Imperador Leão III (acusado de “pensar como um sarraceno”), por volta de 725, mandar “retirar o ícone do Senhor que estava em cima da grande Porta de Bronze”, em Constantinopla, passou por um século e meio de ferro e fogo, em razão da guerra feroz entre iconoclastas e iconódulos? E se, em 843, se deu o “Triunfo da Ortodoxia” e da “teologia da veneração do ícone”, isso não resolveu de uma vez para sempre todos os problemas em torno do culto das imagens sagradas (doulia, hiperdoulia, latria, idolatria), nem mesmo no Oriente. A questão, aliás, não deixou de estar presente também no Ocidente franco, nos coevos e famosos Libri Carolini, de finais do séc. VIII, contra o Segundo Concílio de Niceia (787), não obstante na corte de Carlos Magno ser inteiramente favorável ao brilho das imagens (bem visível no renovo da liturgia, da joalharia religiosa, da paramentaria e alfaias do culto, da caligrafia, etc.).
Nisto, aliás, o Renascimento carolíngio era inteiramente consonante com o programa pedagógico-pastoral das imagens traçado já por Gregório Magno: “O que as Escrituras facultam às pessoas que as lêem, fornece-o as pinturas aos iletrados que as observam.” Ao contrário do Oriente, onde o ícone é uma “presença sagrada”, no Ocidente a imagem diz antes uma mensagem a decifrar. Distintas tensões entre visível e invisível podem rastrear-se também na numismática imperial (v.g., Justiniano I) e em outras representações teológico-políticas, ao longo de séculos. Podemos e devemos referir a forte oposição da escola cisterciense de São Bernardo de Claraval, defensora de um culto austero, despojado e desnudo, contra a Abadia de Cluny (“decoração sumptuosa”, “pinturas curiosas”), e a escola do Abade Suger (1081-1151), reconstrutor da famosa Abadia de Saint Denis. A metafísica da luz e da imagem que aí emerge — com marcas bíblicas, platónicas e neoplatónicas — culminará, no séc. seguinte, no gótico esplendoroso da Sainte-Chapelle. De um radicalizado fugitivo de Cister temos, igualmente, um dos maiores exemplos medievais de “teologia e de exegese visual”: o Liber Figurarum de Joaquim de Fiore (1135-1302).



Mas as Iluminuras e a ideia de ‘Iluminação’ como tal fulguram em muitas outras obras famosas: o Apocalipse do Lorvão / Commentarium in Apocalypsin do Beato de Liébana, The Book of Kells, The Rothschild Prayer Book, etc. Estas e outras temáticas bem mais profanas entrarão, depois, cada vez mais dans le Gaï savoir visuel, na sedução das canções trovadorescas patrocinadas por Eleanor de Aquitânia ou de Marie de France, ou ainda nas excelsas “visões de olhos abertos” de Hildegarda de Bingen. Assim, entre certo aniconismo monástico (v.g., João Cassiano) e os iconoclasmos explícitos (judaico, grego, muçulmano), por um lado e, por outro, a promoção das representações dos deuses, do sagrado, etc., sem grandes inquietações interiores, situação própria do Renascimento, a Idade Média experimentou como poucas épocas a tensão contrastante entre a aceitação e a recusa da imagem: pode conhecer-se sem elas? São todas elas enganadoras? É legítimo figurar de algum modo Absoluto, Deus? Em que sentido Cristo é dito “ícone do Deus invisível? (1 Col 1, 15)?



Umberto Eco dedicou muitas páginas às imagens e ao imaginário medieval, desde o bestiário, o feio e o monstruoso, até aos mais altos píncaros da beleza. A sua semiose das figuras do portal de Chartres e dos vitrais da sua imponente rosácea são alguns exemplos maiores. Também Olivier Boulnois tem dedicado muita da sua investigação à determinação de uma “archéologie du visuel au Moyen Âge”. O pensamento e o culto medievais não vivem, pois, apenas do dogma, do conceito e da fórmula jurídica, conforme alguns caricaturam. Que o digam ainda, nos limites externos da latinidade, João Damasceno, Ibn Arabi ou Moisés Maimónides. Vivem, pois, no alvoroço da imaginação simbólica, fecundada pelas cores, pelas formas e pelas figuras, roçando aqui e ali a heresia, o obsceno e o burlesco. A Escola Franciscana será particularmente tocada pelo simbolismo da luz e do mundo sensível de que o Presépio é a imagem pedagógica por excelência. Também no âmbito das recepções da filosofia de Aristóteles (“A alma nunca pensa sem imagens”, Da Alma, III, 7, 431 a; e “Imitar é congénito no homem”, Poética , 1448 b), a imaginação passará a ter cada vez mais importância no processo de conhecimento, mormente no que respeita à representação visual na pedagogia científica.



E nesta brevíssima pincelada a fresco (que tantas coisas não menciona, v.g., a ambivalência e o desconforto de Santo Agostinho no que respeita às imagens) podemos e devemos referir-nos ainda ao séc. XIV, o qual, se é verdade que assiste ao renascimento de tendências lógicas refratárias ao visual, também é verdade que se inicia com esse portento de imaginação simbólica que é a Divina Comédia de Dante Alighieri. Outrossim, também a teologia do corpus mysticumnão sóconfigurou a representação dos “dois corpos do Rei” como determinou totalmente a ideia (teatral) de repraesentatio tardo medieval, e inspirará ainda a hobbesiana imagem do Levitã. Fica, pois, este breve mural apenas para vos inspirar e incitar a que participem.