
Capa do livro Estudos de Arte e Devoção.
A simbologia das pedras preciosas na Bíblia e nos clássicos ou a imagem do Santo Cristo dos Açores como uma tradução da iconografia do Ecce Homo, são dois dos temas que integram o volume Estudos de Arte e Devoção (ed. Paulinas), da autoria do bispo e historiador Carlos Moreira Azevedo, que será apresentado nesta semana que agora se inicia, em Lisboa e Porto.
O livro inclui ainda estudos sobre a evolução do modelo iconográfico de Maria – Sede da Sabedoria; as placas devocionais hispânicas; os registos de santos como testemunhos de devoção e arte; ou São Nicolau, orago de Santa Maria da Feira. A Senhora da Lapa como itinerário de uma devoção e o Bom de Jesus do Monte como arquitetura de paisagem e proposta espiritual são outros dois estudos. A arte contemporânea integra também a obra, com reflexões sobre a tapeçaria da Igreja de Santo Ovídio, de Gaia, de Fernando Lanhas; a Última Ceia, de Isabel Nunes; e o Cristo Crucificado de José Aurélio.
A apresentação do livro decorre na Brotéria (R. de São Pedro de Alcântara 3), em Lisboa, na próxima quinta-feira, 13 (18h30), e estará a cargo de António Camões Gouveia. No Porto, no dia seguinte, a sessão decorre no salão nobre Igreja da Lapa, a partir das 21h e estará a cargo de José Manuel Tedim.
O 7MARGENS antecipa, em pré-publicação, a introdução da obra.

Sempre ao longo da atividade científica desenvolvida, quer na universidade, quer no âmbito da ação pastoral, quer ainda na intervenção cultural, atendi com particular atenção à materialidade do símbolo, vale dizer, à realização artística concretizada no âmbito da religiosidade e da espiritualidade cristãs, muitas das vezes a partir do laboratório da realidade portuguesa e da sua rica história social. Não há muito, reuni um conjunto de Estudos de iconografia cristã (Vila Nova de Gaia, FML, 2016). Desta feita, e em complementaridade, apresento novo acervo de estudos, fruto de pedidos de colaboração entretanto satisfeitos. Faço-o numa circunstância vital particular, ao avizinhar-se a celebração dos setenta anos de vida, hora sempre propícia a balanços.
A variedade de abordagens, aqui contida, abrirá a leituras tocantes não apenas a diversidade temática, mas também a distintos terrenos de investigação, desde a espiritualidade das pedras preciosas à devoção dos registos de santos. Aqui se penetra na arte da incisão e da gravura ao serviço da devoção mais íntima e doméstica e que chega mesmo a instrumento da contemplação nos Exercícios espirituais inacianos, em edição portuguesa de 1687.
Esta recolha inicia-se com uma recuperação da simbologia espiritual das pedras preciosas, sem me deter em nenhuma obra em particular, mas apresentando as referências bíblicas e os principais tratados escritos em busca de relacionamento entre a diversidade de pedras e a aspiração de virtudes. Conjugam-se duas raridades: a das pedras e a dos valores! O arco cronológico destes estudos permite viajar do século XII ao século XXI.
O sucesso da fórmula Sedes Sapientiae, atingido nos séculos XI-XIV, relaciona-se com a valorização de uma corrente da espiritualidade mariana, conjugada com uma proteção política e económica promotoras da figuração.
O caso do culto a São Nicolau, hoje difundido pela publicidade do imaginário natalício, assume o auge no século XIV e, curiosamente, tem na Diocese de Bragança uma incidência maior na escolha de oragos protetores das novas paróquias. Ora, o santo que estava então na moda merece a preferência.
A figuração de Cristo Ecce Homo adquire nos séculos XV a XVIII um vigor, no qual se enquadra a imagem do Santo Cristo de Ponta Delgada, nos Açores, datável do século XVII. A indagação privilegiou o enquadramento do contexto artístico, de modo a indicar uma cronologia, o que veio contrariar a lenda. Possivelmente trata-se do dote de uma religiosa do Mosteiro da Esperança ao qual Teresa da Anunciada concedeu atenção, impulsionando com grande eficácia o culto.

A veneração da Senhora da Lapa, com testemunhos desde o século XV, atributo motivado pela situação geográfica da capela numa gruta ou rochedo, adquire peso nacional graças à ação divulgadora do P. Ângelo de Sequeira e fixa-se numa determinada representação de Santa Maria sem Menino que haveria de inspirar, como se sabe, a própria imagem da Senhora de Fátima.
A devoção por alguns santos provoca a multiplicação de imagens como resposta ao desejo de proximidade e de perdurar visualmente a memória, seja nas placas de bronze penduradas nos oratórios ou nas paredes de casa, seja nos registos de santos geralmente colocados em livros de piedade ou emoldurados. São famosos os trabalhos manuais dos mosteiros femininos e que mesmo hoje prossegue com cultores apaixonados. As placas hispânicas, que coleciono há mais de 20 anos e aqui integradas no conjunto da sua produção, e os registos de santos, brevemente assinalados a partir da coleção do Museu Nacional de Arqueologia, permitem o aconchego da mão, um tratamento carinhoso, na simples piedade que identifica a imagem com a figura representada, a quem se entrega uma prece ou agradece um dom. Como se beija a figura de um ente querido, igualmente a imagem de Cristo, de Maria ou de um santo com quem se estabelece uma relação espiritual.
As 12 gravuras da edição seiscentista da prática dos Exercícios espirituais de Santo Inácio, apesar de mal copiadas da edição espanhola de Roma, demonstram a necessidade sentida de completar com a imagem a procura da vontade de Deus. o recurso à cultura da imagem esteve presente na escola inaciana em múltiplos exemplos.
Da arte contemporânea selecionei três escritos sobre obras de artistas profundamente diversos, mas a quem me unem laços de proximidade e estima. Apraz-me registar esta amplitude de olhares sobre o Transcendente: tapeçaria e vitrais de Fernando Lanhas, escultura de José Aurélio e pintura de Isabel Nunes.
As representações figuradas, implicadas na ação cultural, produzem uma passagem fundamental: passam de coisas a sinais. o devoto é remetido para outro nível, pela imagem que facilita o acesso ao que nos transcende. A materialidade dos artefactos ganha importância na devoção católica e pode chegar ao exagero de adquirir força própria e autónoma. Mas vale a pena correr o risco pelas vantagens abertas e que estes estudos ilustram.