Eugénio de Andrade: a mística do corpo

| 13 Jun 20

Eugénio de Andrade. Obra de Artur Bual

Eugénio de Andrade. Obra de Artur Bual na casa Eugénio de Andrade na Póvoa de Atalaia (Fundão), terra natal do poeta. Foto © António Marujo

 

Só através do corpo nos podemos erguer à divindade
(Eugénio de Andrade, Rosto Precário)

Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas (Póvoa de Atalaia, Fundão, 19 de Janeiro de 1923 – Porto, 13 de Junho de 2005), um dos mais prestigiados e traduzidos poetas portugueses; nasceu numa família de camponeses, prosseguiu os seus estudos em Castelo Branco, Lisboa e Coimbra. Integrado na Inspecção de Serviços Médico-Sociais, viveu os últimos 50 anos da sua vida no Porto. Morreu faz agora 15 anos.

Na sua poesia, os elementos da Natureza – Ar, Água, Terra, Fogo – são possuídos de um espírito ou força cósmica, consubstancializando-se no poema. É esta a tradição da nossa poesia, nas Cantigas de Amigo galaico-portuguesas dos trovadores medievais, cantadas por jograis. Daí a repetição, a musicalidade. As forças da natureza constituem símbolos do amor; tornam-se íntimas de um sujeito feminino que as interroga sobre o “amigo” ausente ou que tarda ao encontro amoroso.

Na obra Rosto Precário, comenta o poeta: (…) “É a partir do homem ‘da carne e dos sentidos’ que ascendemos à brancura rarefeita de uma neve, que sobre nós, cai nupcial. Com mais coração que cabeça, mais sensíveis ao elemento da alma que ao rigor do espírito (…).”

“A luz/ a luz trazida/ pelos rosados pés dos pombos/ dos confins da alegria// – quem pudera levá-la/ à boca e dormir apaziguado. (in O Sal da Língua).

“Ó manhã, manhã/ manhã de setembro/ invade-me os olhos/ inunda-me a boca/ entra pelos poros/ do corpo, da alma/ até ser ti,/ sem peso e memória/ um acorde só/ do vento e da água/ uma vibração…” (in Ostinato Rigore).

O universo despojado da infância, movido pela Natureza e a figura tutelar da Mãe abraçam-se num amor intemporal:

“Um sorriso abre-se então/ num verão antigo./ E dura, dura ainda.” (in Os lugares do Lume).

Póvoa de Atalaia. Eugénio de Andrade,

Póvoa de Atalaia (Fundão), terra natal de Eugénio de Andrade: “Um sorriso abre-se então/ num verão antigo./ E dura, dura ainda.” Foto © Isabel Duarte.

 

Mesmo para além da morte:

“Não sei como vieste/ mas deve haver um caminho/ para regressar da morte.// Estás sentada no jardim/ as mãos no regaço cheias de doçura/ os olhos poisados nas últimas rosas (…) Deixa-te estar assim /ó cheia de doçura/ sentada, olhando as rosas,/ e tão alheia/ que nem dás por mim.” (Pequena Elegia de Setembro, in Antologia Breve).

A água, corre liberta, sonora como a música, (“os álamos,// essa música/ de matutina cal…) associada também ao eros, ao cosmos: “Água, água/ Porosa água da alegria/ do pão na mesa/. Águas de Li Bai ébrias/ de S. João da Cruz abrasadas/ de amor (…) Ó antiquíssima água das estrelas/ próximas distantes matinais./ Oculta água dada a beber / num só olhar.” (in Os Sulcos da Sede).

Falamos da Água, do Fogo, do Eros – a sua ascensão e declínio que “(…)  não pode reduzir-se meramente à sexualidade (…) como estranhar-se, entre nós, a (…) a melodia do Eros? Que poeta português pode negar-lhe a face sem negar ao mesmo tempo o próprio coração?” (in Rosto Precário):

“A boca,// onde o fogo/ de um verão/ muito antigo// cintila, // a boca espera//  (que pode uma boca/ esperar/senão outra boca?) // espera o ardor/ do vento/ para ser ave, // e cantar.” (in Obscuro Domínio)

“(…) no limiar da minha boca, / onde te demoras a dizer adeus// Escuto um rumor: é só silêncio.” “Ó pureza apaixonadamente minha: terra toda nas minhas mãos acesa// (…) Seria a morte esta carícia/ onde o desejo era só brisa?» (in Ostinato Rigore). 

Depois, vem a decadência:

 “Agora a mão; que não sabe voar; / nem sequer converter/ a pedra em nascente; mão/ cheia de nada…” (in Branco no Branco)

Muitos poemas recordam fragmentos da poesia de Safo que o poeta traduziu e por isso foi elogiado por Maria Helena da Rocha Pereira: é “um desses raros fenómenos de convergência artística (…)”:

“Com o sopro da manhã e o aroma/ das frésias eu sonhava longamente.” (in Ostinato Rigore)

“Que terror te ergueu/ pétala a pétala/ para eu desfolhar/ ó manhã de oiro!” (idem).

Esta semelhança articula-se também com o gosto do haiku: a contenção, o paradoxo, a plenitude do instante, o silêncio:

“Era um amieiro/ uma azenha/ e junto/ um ribeiro// Tudo tão parado/ – que deveria fazer?/ Meti tudo no bolso/ para não os perder.” (in Ostinato Rigore).

Conclui o poeta: “O futuro do homem é o homem (…) Mas o homem do futuro não nos interessa desfigurado. (…) é contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge (…). Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, o seu efémero rosto feito de milhares e milhares de rostos, esplendidamente respirando na terra, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisa comum (…). É a tal rosto que cada poeta está religado. (…) Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.” (in Rosto Precário).

“Como se recusa o amor? Perguntavas,/ O sorriso brincando ao sol com as romãs.”

“Estive sempre sentado nesta pedra/ escutando, por assim dizer, o silêncio (…) Estou onde sempre estive: à beira de ser água./ Envelhecendo no rumor da bica/ por onde corre apenas o silêncio.” (in Os Sulcos da Sede).

Fonte. Póvoa de Atalaia. Eugénio de Andrade,

Fontanário na Póvoa de Atalaia (Fundão), terra natal de Eugénio de Andrade. Foto © Isabel Duarte

 

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