Eugénio de Andrade: a mística do corpo

Eugénio de Andrade. Obra de Artur Bual na casa Eugénio de Andrade na Póvoa de Atalaia (Fundão), terra natal do poeta. Foto © António Marujo
Só através do corpo nos podemos erguer à divindade
(Eugénio de Andrade, Rosto Precário)
Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas (Póvoa de Atalaia, Fundão, 19 de Janeiro de 1923 – Porto, 13 de Junho de 2005), um dos mais prestigiados e traduzidos poetas portugueses; nasceu numa família de camponeses, prosseguiu os seus estudos em Castelo Branco, Lisboa e Coimbra. Integrado na Inspecção de Serviços Médico-Sociais, viveu os últimos 50 anos da sua vida no Porto. Morreu faz agora 15 anos.
Na sua poesia, os elementos da Natureza – Ar, Água, Terra, Fogo – são possuídos de um espírito ou força cósmica, consubstancializando-se no poema. É esta a tradição da nossa poesia, nas Cantigas de Amigo galaico-portuguesas dos trovadores medievais, cantadas por jograis. Daí a repetição, a musicalidade. As forças da natureza constituem símbolos do amor; tornam-se íntimas de um sujeito feminino que as interroga sobre o “amigo” ausente ou que tarda ao encontro amoroso.
Na obra Rosto Precário, comenta o poeta: (…) “É a partir do homem ‘da carne e dos sentidos’ que ascendemos à brancura rarefeita de uma neve, que sobre nós, cai nupcial. Com mais coração que cabeça, mais sensíveis ao elemento da alma que ao rigor do espírito (…).”
“A luz/ a luz trazida/ pelos rosados pés dos pombos/ dos confins da alegria// – quem pudera levá-la/ à boca e dormir apaziguado. (in O Sal da Língua).
“Ó manhã, manhã/ manhã de setembro/ invade-me os olhos/ inunda-me a boca/ entra pelos poros/ do corpo, da alma/ até ser ti,/ sem peso e memória/ um acorde só/ do vento e da água/ uma vibração…” (in Ostinato Rigore).
O universo despojado da infância, movido pela Natureza e a figura tutelar da Mãe abraçam-se num amor intemporal:
“Um sorriso abre-se então/ num verão antigo./ E dura, dura ainda.” (in Os lugares do Lume).

Póvoa de Atalaia (Fundão), terra natal de Eugénio de Andrade: “Um sorriso abre-se então/ num verão antigo./ E dura, dura ainda.” Foto © Isabel Duarte.
Mesmo para além da morte:
“Não sei como vieste/ mas deve haver um caminho/ para regressar da morte.// Estás sentada no jardim/ as mãos no regaço cheias de doçura/ os olhos poisados nas últimas rosas (…) Deixa-te estar assim /ó cheia de doçura/ sentada, olhando as rosas,/ e tão alheia/ que nem dás por mim.” (Pequena Elegia de Setembro, in Antologia Breve).
A água, corre liberta, sonora como a música, (“os álamos,// essa música/ de matutina cal…) associada também ao eros, ao cosmos: “Água, água/ Porosa água da alegria/ do pão na mesa/. Águas de Li Bai ébrias/ de S. João da Cruz abrasadas/ de amor (…) Ó antiquíssima água das estrelas/ próximas distantes matinais./ Oculta água dada a beber / num só olhar.” (in Os Sulcos da Sede).
Falamos da Água, do Fogo, do Eros – a sua ascensão e declínio que “(…) não pode reduzir-se meramente à sexualidade (…) como estranhar-se, entre nós, a (…) a melodia do Eros? Que poeta português pode negar-lhe a face sem negar ao mesmo tempo o próprio coração?” (in Rosto Precário):
“A boca,// onde o fogo/ de um verão/ muito antigo// cintila, // a boca espera// (que pode uma boca/ esperar/senão outra boca?) // espera o ardor/ do vento/ para ser ave, // e cantar.” (in Obscuro Domínio)
“(…) no limiar da minha boca, / onde te demoras a dizer adeus// Escuto um rumor: é só silêncio.” “Ó pureza apaixonadamente minha: terra toda nas minhas mãos acesa// (…) Seria a morte esta carícia/ onde o desejo era só brisa?» (in Ostinato Rigore).
Depois, vem a decadência:
“Agora a mão; que não sabe voar; / nem sequer converter/ a pedra em nascente; mão/ cheia de nada…” (in Branco no Branco)
Muitos poemas recordam fragmentos da poesia de Safo que o poeta traduziu e por isso foi elogiado por Maria Helena da Rocha Pereira: é “um desses raros fenómenos de convergência artística (…)”:
“Com o sopro da manhã e o aroma/ das frésias eu sonhava longamente.” (in Ostinato Rigore)
“Que terror te ergueu/ pétala a pétala/ para eu desfolhar/ ó manhã de oiro!” (idem).
Esta semelhança articula-se também com o gosto do haiku: a contenção, o paradoxo, a plenitude do instante, o silêncio:
“Era um amieiro/ uma azenha/ e junto/ um ribeiro// Tudo tão parado/ – que deveria fazer?/ Meti tudo no bolso/ para não os perder.” (in Ostinato Rigore).
Conclui o poeta: “O futuro do homem é o homem (…) Mas o homem do futuro não nos interessa desfigurado. (…) é contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge (…). Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, o seu efémero rosto feito de milhares e milhares de rostos, esplendidamente respirando na terra, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisa comum (…). É a tal rosto que cada poeta está religado. (…) Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.” (in Rosto Precário).
“Como se recusa o amor? Perguntavas,/ O sorriso brincando ao sol com as romãs.”
“Estive sempre sentado nesta pedra/ escutando, por assim dizer, o silêncio (…) Estou onde sempre estive: à beira de ser água./ Envelhecendo no rumor da bica/ por onde corre apenas o silêncio.” (in Os Sulcos da Sede).

Fontanário na Póvoa de Atalaia (Fundão), terra natal de Eugénio de Andrade. Foto © Isabel Duarte
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