Cuidado com o eurocentrismo. Há mais mundo para lá da Europa, meus senhores. A bitola europeia não serve para avaliar a diversidade da casa comum da humanidade.

“Para conseguirmos ler o sentir de um povo temos que abandonar a nossa experiência e convicções…” Foto © Diana Polekhina / Unsplash
Um dos maiores erros do observador europeu quando olha para a realidade social, política e religiosa das Américas é partir sempre dos seus próprios pressupostos, seja em que dimensão for.
Acontece frequentemente que nós, portugueses, olhamos para a realidade religiosa do Brasil ou mesmo dos Estados Unidos e não entendemos nada do que se passa. No caso dos nossos irmãos de língua faz-nos confusão a extrema diversidade das religiões e espiritualidades, a sua afirmação e relevância na vida pública, a sua aceitação geral sem preconceitos, em suma, uma certa postura livre dos homens e mulheres de fé que não têm receio de partilhar publicamente as suas crenças religiosas ou a falta delas.
Relativamente aos Estados Unidos custa-nos a engolir que a religião influencie tanto a política e a sociedade, como durante o trumpismo e que os líderes religiosos assumam tal postura com frontalidade e até orgulho.
Por aqui, passámos do Portugal monolítico de há cem anos, em que poucos ousavam negar a sua filiação no catolicismo oficial, para um país que se apresenta largamente como católico mas apenas por tradição ou agnóstico, uma espécie de terra de ninguém e lugar de conveniência, como se fosse uma marca de Modernidade e uma afirmação europeísta.
A questão é que, se queremos entender o mundo temos que mudar de óculos. A Ásia, a África e o continente americano exprimem realidades sócio-religiosas muito diversas do que conhecemos neste canto ocidental da Europa. No fundo, a resistência à diversidade não passa duma questão de mentalidade. Não se pode esperar ampla aceitação do que é diferente num país que só desmantelou formalmente o sistema da Inquisição há umas quantas gerações, mesmo que os autos-de-fé já não se realizassem há muito. Em parte será isso que explicará o sucesso da PIDE e dos seus “bufos” durante o salazarismo-marcelismo. Todos sabemos que mudar leis é fácil, o que é difícil é aplicá-las e sobretudo mudar as mentalidades.
Como entender o crescimento exponencial dos grupos neopentecostais a partir do Brasil, quando surgem sem qualquer consistência teológica e transformados em empresas de exploração dos medos, da ignorância e da crendice no mercado da fé? Como entender que políticos sem convicção de fé pessoal que seja conhecida façam fila à porta das lideranças religiosas para lhes agradar? Como entender a troca de favores entre o campo religioso e o político? Como entender a já longa prática de líderes religiosos no activo que se candidatam a cargos electivos, correndo o risco de dividir o rebanho que pastoreiam? Como entender o sistema dos “currais eleitorais” nas igrejas onde os pastores se dispõem a manipular o sentido de voto das massas, em nome de ganhos pessoais ou de grupo?
Estas e muitas outras questões desafiam o princípio basilar do estado laico e de direito democrático que é tão caro aos europeus, mas que não é visto da mesma forma noutras sociedades.
Para conseguirmos ler o sentir de um povo temos que abandonar a nossa experiência e convicções para entender minimamente os fenómenos sociais que se nos deparam. Precisamos de arriscar uma incursão em território desconhecido.
No caso norte-americano verifica-se uma progressiva mudança estrutural de uma sociedade WASP (branca, anglo-saxónica e protestante) para um outro tipo de sociedade muito mais mesclada pelo crescimento dos hispânicos, asiáticos e negros, e na qual se prevê que a maioria branca deixe de o ser dentro de algum tempo. Tal mudança demográfica implica alterações significativas na identificação religiosa, além da queda do próprio protestantismo branco, cuja agenda política as novas gerações parecem não estar a acolher, segundo estudos recentes.
O caso brasileiro é ainda muito mais complexo em consequência do processo de construção daquela sociedade. O populismo encontrou desde sempre terreno fértil na América Latina e dá hoje corpo a um subtipo específico a que podemos chamar populismo religioso, tão bem interpretado pelos sectores religiosos que promovem o culto da personalidade dos seus líderes, em especial nas franjas neopentecostais.
Na prática, as sociedades dos novos mundos gozam de maior liberdade, sem as peias duma tradição secular, mas arriscam a emergência de grupos de oportunistas sem escrúpulos que apenas pretendem fazer uso do mercado religioso ao tirar partido da crendice popular e da fragilidade emocional e existencial das populações, em particular dos menos formados e informados.
José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e director da revista teológica Ad Aeternum; texto publicado também na página digital da revista Visão.