
Pormenor de obra de Enrique Mirones, monge do mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza. “Acredito que mesmo quem assuma a vida como uma dádiva gratuita com um sentido inerente não terá necessariamente de recusar liminarmente a eutanásia.” Foto © Paulo Bateira, cedida pelo autor
Há, com certeza, várias maneiras de interpretar o significado da vida humana.
Porém, é possível simplificar este problema reduzindo as várias perspetivas a apenas dois pontos de vista. O primeiro interpreta a vida humana como uma mera ocorrência natural sem nenhum sentido especial nem nenhum desígnio particular. O segundo – no âmbito de uma visão religiosa do mundo – interpreta-a como uma dádiva divina eivada de sentido original e dirigida para um fim.
Tradicionalmente, estas duas compreensões da vida conduziram a posições opostas a respeito do problema da legalização da eutanásia. Quero, no entanto, problematizar a distância que se tem cavado entre os dois pontos de vista.
Acredito que mesmo quem assuma a vida como uma dádiva gratuita com um sentido inerente não terá necessariamente de recusar liminarmente a eutanásia. Na visão cristã tradicional, a eutanásia – tal como o suicídio – seria um ato de ingratidão face a um dom divino que urge manter e valorizar até ao último momento. A morte procurada direta ou indiretamente constituiria, portanto, uma recusa da vida que Deus pôs à disposição de cada ser humano. Constituiria, assim, um ato de oposição a essa inestimável dádiva de Deus e, portanto, à sua vontade. Sem dúvida, um pecado gravíssimo: “A eutanásia voluntária, quaisquer que sejam as formas e os motivos, é um homicídio. É gravemente contrária à dignidade da pessoa humana e ao respeito pelo Deus vivo, seu Criador.” (Catecismo da Igreja Católica, 2324)
Mas será este o único ponto de vista possível, mesmo para um crente? Não creio que o seja. Na verdade, de uma forma geral, a pessoa que prefere morrer antes de lhe sobrevir a morte natural não o faz porque rejeita a vida, mas exatamente porque rejeita a situação de morte existencial em que se encontra. O suicídio e a eutanásia não são, em geral, uma recusa da vida, mas uma recusa da forma indigna de que a vida biológica se reveste em determinado momento.
A vida humana não é apenas nem sobretudo uma questão de natureza biológica, é um problema existencial. Viver humanamente não é só nem sobretudo estar biologicamente vivo, é poder apreciar esse dom inestimável, saboreá-lo, fruir dele. Por isso, alguém pode estar biologicamente vivo, mas existencialmente morto. É essa indignidade, essa vida meramente biológica que já não vale a pena ser vivida que o requerente da eutanásia (e também o suicida) querem rejeitar. Na verdade, não é morrer que eles desejam, é viver com sentido e, uma vez que a vida biológica que lhes é concedida não lhes permite viver em sentido autenticamente humano, preferem pôr fim ao ciclo de morte com que se debatem.
Para os não crentes, aquilo que procuram é a não existência, que lhes parece mais desejável do que uma vida desprovida de todo o sentido; para os crentes, aquilo que procuram é exatamente a vida em plenitude que os espera e a libertação definitiva do sofrimento atroz – psíquico ou físico – em que se encontram, que lhes nega a possibilidade de ver na vida um conjunto de oportunidades para a realização pessoal.
Para mim que sou crente, é minha convicção de que Deus nos deu a vida e de que este dom é inestimável. Mas essa vida não é, de modo algum, um dom acabado que devemos apenas preservar sem mais. Recordemos a parábola dos talentos: o servo que fez um buraco na terra e aí escondeu o seu talento é fortemente repreendido pelo senhor por não ter posto a render o talento que lhe fora dado. A vida não é um tesouro intocável que possamos guardar em lugar seguro sem criativamente a refazermos todos os dias com as nossas decisões, as nossas opções e os nossos comportamentos. A vida é também uma responsabilidade que nos é posta nas mãos para dela fazermos o que considerarmos relevante. Foi exatamente por isso que Deus nos criou livres. Toca a cada um discernir em cada situação da vida qual a melhor opção, a que faz mais sentido para si, a que melhor serve a Vida.
A biologia é a base informe a partir da qual construímos a vida humana, construindo-nos a nós próprios a partir dos valores que considerarmos adequados. Amar a vida não é simplesmente amar a existência biológica até ao limite. É amar a vida enquanto projeto que a nossa liberdade é chamada a construir, a vida com sentido. E quando a sua degradação impede a fruição das suas potencialidades, qual a melhor resposta a dar? Não há receitas acabadas, nem decisões absolutamente boas ou absolutamente más. Toca a cada um ler a sua existência e tomar a decisão que melhor serve a Vida, sem ficar simplesmente refém daquilo que a superfície biológica lhe reserva.
É exatamente isso que faz do ser humano um ser livre: ergue-se acima do substrato biológico que lhe foi concedido, mudando-o, alterando-o, criando a partir dele novas oportunidades ou negando-o quando já não serve a plenitude de uma vida com sentido. Porque negar a vida biológica também pode significar a entrega definitiva nos braços da plenitude da Vida.
Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.