
Obra de Enrique Mirones, monge do mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza. “Há muito que a nossa cultura adotou a liberdade individual como valor essencial a preservar inequivocamente.” Foto © Paulo Bateira, cedida pelo autor
Por vezes, tenho a sensação de que a Igreja Católica, enquanto organização institucional, se comporta como alguém que caiu inadvertidamente num pântano de areias movediças e, em vez de parar de se movimentar, debate-se convulsivamente à procura de soluções. Porém, quanto maior é a agitação para se libertar do perigo iminente, mais se afunda na lama. Como pode a Igreja continuar a usar concepções filosóficas e teológicas medievais num mundo tão radicalmente diferente daquele onde tais concepções foram forjadas? É confrangedor ver a instituição repetir à saciedade as mesmas orientações éticas e os mesmos argumentos quando já praticamente ninguém percebe ou aceita sequer a linguagem que ela adota. Vem isto a propósito do atual debate sobre a eutanásia.
A defesa intransigente da ideia de que a eutanásia deve ser liminarmente proibida, independentemente das situações, revela que a instituição eclesial ainda não compreendeu que a velha sociedade não secularizada e universalmente “cristã” – a cristandade – já ruiu há muito. O mundo em que vivemos é outro. Nele convivem valores, comportamentos e cosmovisões muito diversificadas. Nas nossas sociedades modernas – ou pós-modernas – coexistem visões plurais da vida e do mundo. Há certamente um mínimo de valores – codificados em lei – que têm de ser universalmente partilhados de modo a servirem de orientação para as relações humanas e institucionais. Tais códigos de valores estabelecem, decerto, limitações à liberdade individual. Por isso, devem constituir um mínimo denominador comum, sendo apenas os que se revelam estritamente necessários à manutenção da coesão social.
Na verdade, há muito que a nossa cultura adotou a liberdade individual como valor essencial a preservar inequivocamente. Não significa, obviamente, que não tenhamos de restringir a liberdade individual quando estão em causa os direitos dos outros. Mas significa, sem sombra de dúvida, que essa restrição ocorre apenas naquelas situações que se revelam essenciais à manutenção da paz social. Num Estado moderno e plural, tudo o resto deve ser deixado à autonomia individual.
Quando a Igreja pretende manter o atual estado legal que proíbe liminarmente a aplicação da eutanásia – e o mesmo acontece para o aborto – está a propor uma limitação clara da liberdade para todos os indivíduos, independentemente da sua visão do mundo. Ora não cabe à Igreja determinar quais os valores que devem nortear a vida dos que não se encontram no interior das suas fronteiras nem partilham com ela dos mesmos pontos de vista essenciais. Assim sendo, não se vê por que razão a Igreja deveria propor ao Estado que legisle de forma tão restritiva, proibindo universalmente a adoção de comportamentos aceites por grupos de cidadãos com mundividências diferentes. A ação da Igreja deve, portanto, restringir-se àqueles que se movem no interior das suas fronteiras, nunca procurando impor a todos uma padronização de comportamentos a partir de conceções que não são universalmente partilhadas.
O Estado deve ou não restringir a liberdade individual, no que à eutanásia diz respeito, em nome de um bem coletivo de valor superior? A meu ver, não há qualquer motivo para o fazer, uma vez que a prática da eutanásia não mina a paz social nem nega direitos de terceiros. O princípio da liberdade individual deve, assim, prevalecer sobre qualquer outro princípio. Ao Estado cabe defender a autonomia do indivíduo, a sua autodeterminação, a possibilidade de conduzir a sua vida como bem entender ou pôr-lhe termo caso considere não haver condições mínimas para fazer sentido o seu prolongamento. Só um Estado totalitário proíbe aos seus cidadãos comportamentos que não se revelam atentatórios da paz social. Pelo contrário, um Estado democrático aceita o pluralismo de valores que naturalmente ocorre entre os seres humanos e há de permitir a todos levar por diante a sua conceção de vida desde que não atente contra a paz social e os direitos de outrem. A eutanásia, tal como o aborto, inscreve-se neste domínio.
Não será a eutanásia um atentado ao direito inalienável à vida constitucionalmente defendido? No artigo 24.º declara-se que “A vida humana é inviolável.” Tal declaração pretende proibir todos os atos que, ao longo dos tempos, foram perpetrados por indivíduos, grupos e Estados contra a vida humana. O que aqui se defende é o direito de todos os indivíduos verem respeitado o seu desejo de viver, cabendo ao Estado a obrigação de preservar tal direito, sempre que se depare com situações que o ponham em causa. Não se trata, portanto, de “defender” o indivíduo da sua vontade de pôr termo à própria vida. É que a vida não é necessariamente uma obrigação (poderá sê-lo apenas para quem assim o entender, mas não o será decerto para todos), é um direito individual que deve ser preservado contra todas as forças externas que o queiram pôr em causa. É por isso que o suicídio não é um crime, nem é proibido legalmente em Estados democráticos plurais. A pessoa pode dispor da sua vida como bem entender, cabendo ao Estado garantir as condições para que tal possa ocorrer.
A eutanásia nada mais é do que o cumprimento da vontade soberana do indivíduo de querer pôr termo a uma vida que, pelas mais variadas razões, considera destituída de sentido. A legalização da eutanásia revela tão-só o respeito do Estado pela autonomia individual e a garantia de que o indivíduo terá todo o apoio necessário para que a sua vontade soberana se possa cumprir.
Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.