“Fake religion”

| 27 Mai 20

 Para que uma falsificação faça sentido e seja bem-sucedida tem que juntar pelo menos duas condições. Antes de mais, o artigo a falsificar tem de estar presente no mercado e em segundo lugar tem que representar valor comercial. Ora, o mercado religioso existe e está bem de saúde, para desespero dos neo-ateístas.

 

O campo religioso é do mais criativo que se possa imaginar. No caso concreto da fé cristã, estes dois mil anos de percurso, adaptação e experiência são dignos de admiração. Já se viu de tudo, desde a capacidade camaleónica a que chamamos sincrética, que permitiu ao cristianismo adaptar os cultos da religião popular pré-cristã à sua praxis, como aconteceu aqui na península, passando pela admirável capacidade de sobrevivência debaixo das mais terríveis perseguições e de persistência na clandestinidade, até às alianças com o poder secular, ou a astúcia de se manter à tona durante as revoluções e mudanças radicais de regimes políticos um pouco por todo o lado.

Se este ADN cristão de resistência e resiliência pode suscitar alguma admiração, já o seu lado lunar suscita alguma perturbação. Não falo agora das páginas negras da história religiosa, que se compreendem – mas não se aceitam – pelo simples facto de as religiões serem construções humanas, dirigidas por seres humanos cheios de defeitos e limitações e não por anjos. Porém, esta nossa reflexão centra-se mais na falsificação religiosa que vamos vendo surgir cada vez mais neste tempo de pós-verdade.

Para que uma falsificação faça sentido e seja bem-sucedida tem que juntar pelo menos duas condições. Antes de mais, o artigo a falsificar tem de estar presente no mercado e em segundo lugar tem que representar valor comercial. Ora, o mercado religioso existe e está bem de saúde, para desespero dos neo-ateístas. E de cada vez que surge uma catástrofe, uma guerra ou uma pandemia mortal a tendência geral dos indivíduos é para recorrerem ao discurso religioso, procurando encontrar aí um sentido para o drama que estão a viver, porque o ser humano necessita de encontrar um sentido no que vê e sente acontecer à sua volta.

Por sua vez a motivação do acto de falsificar reúne três intenções, no mínimo: tem que pretender enganar os incautos ou distraídos, e para isso o processo de imitação tem que se revelar minimamente convincente. Por outro lado, tem que alimentar a expectativa de gerar mais-valias, isto é, tem que valer a pena do ponto de vista dos resultados. Finalmente tem que fugir aos impostos, não se submetendo assim ao devido escrutínio geral e potenciando os lucros.

Ora, tudo isto está presente em determinadas franjas do campo religioso.

É impossível não reconhecer práticas de falsificação no comportamento de lideranças religiosas como é o caso das correntes denominadas neopentecostais. De resto uma nomeação abusiva, pois de pentecostais nada conservam, nem na doutrina, nem na prática, nem no discurso ou na sua organização eclesial. São apenas máquinas de exploração do mercado religioso, com intuitos financeiros, com base em práticas de abuso da boa-fé e da crendice popular.

Nestes casos existe um abuso da divindade como referência distorcida, vendendo-se a ideia dum Deus antiético, de baixo moral, que apenas está interessado no dinheiro dos fiéis, levando-os a negociar as bênçãos pretendidas através do vil metal, e condicionando qualquer resposta divina às orações a um investimento financeiro prévio daquele que está vulnerável ou em necessidade de receber uma graça.

Mas também se falsifica a interpretação das escrituras sagradas, reduzindo o seu sentido a um mero negócio transacional entre o crente e Deus. A lei espiritual da sementeira e da colheita é distorcida escandalosamente a fim de levar a água ao moinho dos abusadores religiosos.

Assim, a falsificação vai prosperando no mercado religioso porque a fé cristã está presente no mundo, e por isso a sua falsificação é tentadora, até porque garante lucros aos abusadores religiosos. Por outro lado, não é muito difícil enganar os incautos que desconhecem a vivência duma fé saudável e equilibrada, e sucumbem ao processo de imitação cuidadosamente construído. Até porque não paga impostos e gera mais-valias significativas, além de não ter de se submeter a qualquer escrutínio. Como se vê, é só facilidades. Por isso vemos por aí tantos falsificadores.

Há quinhentos anos os abusos de Johann Tetzel, OP (1465- 1519) e as suas indulgências deram mau resultado, e levaram à Reforma luterana. Mas hoje parece que compensa ser um aldrabão da fé.

 

José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona e coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; texto publicado também na página digital da revista Visão.

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