
Ilustração © Aquarela original de Susana Braguês para esta publicação.
A gente habitua-se ao tom de enfado desta repetição, ao tom de denúncia de quem diz “falar, falar, falar” como se colocasse o dedo na ferida da nossa inconsequência. Nos piores casos, da nossa hipocrisia. Mas aconteceu-me outra coisa em julho. No podcast do Centro de Espiritualidade Redentorista (CER) temos a cada dia 9 uma conversa com alguém de quem gostamos. Estávamos a conversar, a Margarida e eu, com a Rozélia Monjardim sobre o seu trabalho tão envolvente com pessoas refugiadas. Enquanto a espontaneidade da conversa se estendia, o sentimento de impotência aparecia, como uma intromissão, uma inconveniência. Foi então que lhe perguntámos: “Rozélia, o que podemos fazer?! Pessoas como a Margarida e eu… o que podemos fazer?!” E ela, pausando apenas o tempo de uma respiração, respondeu-nos: “Falar, falar, falar. Não deixem de falar disto.”
Foi como um caderno de encargos recebido naquele momento. Foi como um refrão que tivesse chegado vestido de gala à sala de orquestra para assumir o lugar de maestro, com a batuta na mão e uma nova pauta para o ano. Repensámos toda a programação do podcast do CER por causa disto. Porque queremos, realmente, “falar, falar, falar”. Isso podemos fazer, não perderemos a mínima oportunidade.
Desta minha “Margem 8” quero cumprir o mandamento recebido de “falar, falar, falar”. Tinha poesia em casa apetrechada para estas coisas, e voltei a ela: “Solo Andata”, de Erri de Luca. O título diz quase tudo, “Apenas Ida”, a excruciante incerteza de quem se atira ao mar em barcos de borracha, ou pouco melhor, para chegar à Europa. É um poema grande e sanguíneo, versos que percutem no movimento de guelras aflitas, estrofes que procuram ar numa sucção desesperada. Escreve quem viu, aquele poeta napolitano que obedece a impulsos como de um enviado de guerra.
“Mediterrâneo” é palavra que se ajeita à desgraça de ser abismo, queda livre, terra de ninguém, vala comum. Significa “entre terras”, um mar partilhado entre europa, ásia e áfrica, um lugar a parecer cada vez mais uma falha tectónica a céu aberto.
A 9 de outubro, em novo episódio do Podcast do CER, conversámos com a Isabel Martins da Silva directamente de Lampedusa, onde ela estava com a equipa da MEERU. Foi uma conversa apaixonante por causa da esperança que nasce dos gestos e lugares concretos. Tem acontecido de tudo naquela pequena ilha italiana. Ultimamente, há semanas em que aqueles que chegam pelo mar são mais do que os habitantes todos da ilha! E são acolhidos como “visitas”, como “hóspedes”, com uma profunda humanidade. E são honrados os mortos e acarinhados os vivos. E, acima de tudo, não há quem os convença a terem medo de quem chega nem a tratá-los como invasores. Esses discursos não estão a pegar ali, o lugar que pareceria o mais propício a isso. Em vez disso, nestes últimos vinte e cinco anos criou-se uma cultura local de acolhimento e abertura. Os sinais são muitos e tocantes. Vale a pena ouvir o que a Isabel conta.
O que mais me emociona nestas conversas? As pessoas que estão realmente envolvidas não falam nos números que aparecem nos jornais, mas dizem nomes de pessoas muito concretas. Nomes africanos, asiáticos, europeus… E conta histórias, também. Sim, esta gente conta histórias que falam de comida, bonecos, gestos, casas, camisolas, penteados. Cada coisa e cada evento merece a dignidade que a Luiza Neto Jorge disse da sua magnólia: “um mínimo ente magnífico”.
Aconteceu-me ultimamente navegar pelo mediterrâneo e ter o evangelho à mão. Nunca tinha imaginado que aquele convite de “ser pescador de pessoas” deixasse algum dia de ser uma metáfora, e se tornasse um procedimento. Não creio que tivesse passado pela cabeça de Jesus quando o disse na margem daquele mar da Galileia. Mas há quem tenha os sonos trocados e as mãos gretadas por pôr em prática este “vinde comigo” bimilenar.
Voltei a procurar visões num poeta em quem confio, esse napolitano chamado Erri de Luca. Escreveu em 2017 um texto pequenino depois de ter passado duas semanas ao serviço no Prudence, um barco de resgate – o maior que circula no Mediterrâneo – da associação Médicos Sem Fronteiras. Chamou-lhe “Se os golfinhos viessem ajudar”, e traduzo aqui estes parágrafos:
“De vez em quando aparece algum dos nossos fanáticos afirmando que os botes continuam a partir em direcção à europa porque sabem que há barcos de socorro e navios de resgate ao largo. Mas há mais de vinte anos que embarcações pouco melhores do que jangadas com motores atrelados navegam neste mar transportando uma humanidade desorientada. Foi a primeira ao fundo na Páscoa de 1997, afundada por um navio militar italiano que cumpria ordens para impor um bloqueio naval absoluto nas águas internacionais. Vinha da Albânia, o nome da embarcação era Kater i Rades. O estado italiano safou-se com uma indemnização.
Durante vinte anos viajaram pelo mediterrâneo embarcações a motor sem nenhum socorro possível. Agora que finalmente existe algo como uma comunidade internacional de intervenção rápida no mar, seria culpa sua a partida de botes das costas de áfrica e da ásia? Isso é como dizer que as doenças existem por culpa dos medicamentos. Se os golfinhos viessem ajudar a socorrer os desaparecidos no mar, estes fanáticos haviam de acusá-los de cumplicidade com os traficantes. Na verdade, no seu disparate, o que eles pretendem é acusar os socorristas de interromperem o regular evoluir do naufrágio! Porque para eles, somos e devemos continuar a ser contemporâneos endurecidos do mais longo e massivo afogamento no mar que já aconteceu em toda a história humana.”
Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.