Na intervenção que foi convidado a fazer na conferência sobre os abusos sexuais de dia 10, o jornalista João Francisco Gomes teceu várias críticas ao modo como a Igreja Católica se relaciona com os média em Portugal. Depois de ter publicado esse texto na íntegra, e também tendo em conta o Dia Mundial das Comunicações Sociais, que a Igreja Católica assinalou no último domingo, 29 de Maio, o 7MARGENS convidou vários jornalistas que têm acompanhado a informação religiosa com alguma regularidade a escrever um depoimento sobre o tema. A seguir, o contributo de Ricardo Perna, jornalista da Família Cristã.

Ricardo Perna em Roma: “Não há que ter medo das perguntas, há que estar preparados para saber respondê-las.” Foto: Direitos reservados.
Há dias pediram-me que falasse sobre jornalismo e a importância do trabalho em conjunto de Igreja e comunicação social, com alguns seminaristas que se preparam para a ordenação. Repito aqui o que lhes disse lá, não como jornalista, mas como crente: a comunicação social é um tremendo veículo de evangelização do povo, em especial daquele que se encontra mais afastado da comunidade, da eucaristia, mas também de quem está perto e quer conhecer mais e melhor sobre a realidade da fé que professa. É que a fé não é só um conjunto de ensinamentos passados e práticas devocionais, precisa de estar enraizada no dia a dia, na prática da santidade. E saber que isso está a acontecer pode ser feito através dos meios de comunicação social.
Em 2019, o Papa Francisco chamou ao Vaticano os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo para refletirem sobre a realidade dos abusos sexuais e da proteção de menores na Igreja. Uma das oradoras foi uma jornalista mexicana com acreditação permanente no Vaticano, Valentina Alazraki, que colocou as coisas em termos muito claros: “Se vocês forem contra quem abusa e quem encobre os abusos, então estamos do mesmo lado. Podemos ser aliados, não inimigos. Vamos ajudar-vos a encontrar as maçãs podres e a ultrapassar as resistências para os conseguirmos separar dos sacerdotes que são saudáveis. Mas se vocês não decidirem, de forma radical, estar do lado das crianças, mães, famílias, sociedade civil, vocês fazem bem em temer-nos, porque nós, jornalistas, que procuramos o bem comum, vamos ser os vossos piores inimigos.” E isto serve não só para o tema dos abusos, mas para todas as áreas.
A história da relação entre jornalismo e Igreja tem sempre dois lados. De um, há uma falha tremenda na noção da importância do jornalismo para o espalhar da Palavra e alguma sobranceria em achar que os jornalistas devem estar sempre disponíveis para ouvirem as histórias que a Igreja tem para contar, mas a Igreja deve escolher quando estar disponível para os esclarecimentos que os jornalistas quiserem pedir sobre este ou aquele assunto, em especial os mais incómodos. Ouve-se dizer, amiúde, que os jornalistas deveriam “respeitar” a Igreja, esquecendo que, em muitos casos, foram os próprios membros da Igreja que a desrespeitaram e os jornalistas são apenas o veículo que denuncia e expõe essas traições.
Do outro lado, o jornalismo tem uma tendência fatal, que é exponenciada nesta época de imediatismo e mundo digital, que é o de procurar o escândalo, o voyeurismo, o clickbait, não compreendendo que, se a Igreja tem vários escândalos nos quais está envolvida, há muito mais histórias bonitas, positivas, de transformação do mundo nas quais também a Igreja está envolvida, e que poderiam (deveriam, arrisco dizer) ser também contadas com a mesma paixão com que se corre atrás dos escândalos.
Em França, 3% do clero dos últimos 50 anos abusou de menores. O caso é grave, horrível, tem de ser exposto, denunciado, eles e os encobridores, e não deixar pedra por revolver neste drama inenarrável. Mas há 97% de sacerdotes que não são abusadores, que têm projetos de desenvolvimento social, apoio sociocaritativo, ajudam a formar líderes, a construir comunidades em torno da paz e não dos conflitos, a formar jovens que atingem a excelência… e esses também merecem que as suas histórias sejam contadas, com destaque, com alegria e com esperança. Porque se nos ficamos pela pequena minoria que está ”podre”, não prestamos serviço nem à verdade que dizemos procurar, nem aos leitores que dizemos respeitar.
O jornalismo molda a construção da sociedade, e não é nada bom quando olhamos para telejornais, sites, jornais e vemos muita desgraça e pouca graça. Não é critério jornalístico que as desgraças sejam mais importantes que as boas notícias: é critério económico. E se deixarmos que o jornalismo se guie apenas por critérios económicos, teremos em breve um país sem jornalismo, mas cheio de blogues e páginas de desinformação, imensos cliques e visualizações. Não acho que se deva ignorar os problemas, fraudes, escândalos… deve-se conseguir, no entanto, procurar com a mesma avidez notícias boas, o que nem sempre é fácil, principalmente quando as chefias de redação não entusiasmam nesse sentido e até pressionam para que se procure mais essa desgraça.
Depois, é preciso saber do que se fala, e muitas vezes a Igreja é tratada em notícias por jornalistas que não conhecem a realidade, com editores que não sabem como corrigi-los, o que dá origem a gafes e gralhas que não seriam toleradas noutras áreas da sociedade, mas aqui passam despercebidas. O jornalista será criticado se referir que um jogo de futebol é composto por três partes de 30 minutos, em vez de duas partes de 45 minutos, mas ninguém se apercebe, ou corrige, se ele disser que o padre casou a Antónia e o Joaquim, em vez de dizer que abençoou a cerimónia – pois o sacramento do matrimónio é celebrado pelos noivos, são eles que se casam, o ministro da celebração é testemunha e dá a bênção da Igreja à união.
Há aqui um caminho que precisa de ser feito de ambos os lados. A Igreja tem feito essa reflexão e algumas dioceses e santuários estão extremamente bem organizados para dar resposta e possibilitar que os jornalistas possam estar e fazer o seu trabalho com liberdade e rigor. E quando isso acontece, os jornalistas estão presentes. Estiveram 200 jornalistas acreditados para o último 13 de maio no Santuário de Fátima, só para dar um exemplo.
Mas é um caminho lento, que ainda não atinge todas as dioceses, algumas das quais hesitam sequer em dar um número de contacto de um responsável diocesano para algumas questões sobre algo que é do próprio interesse da diocese divulgar. Não há que ter medo das perguntas, das questões, há que estar preparados para saber respondê-las e disponível para esse caminho em conjunto, pois a Igreja só tem a ganhar com esta relação naquele que é o seu principal objetivo: espalhar a Boa Nova.
Uma última reflexão sobre a realidade dos órgãos de informação religiosa. Podendo ser aqueles que melhor informação dispõem e mais conhecimentos práticos tenham sobre a realidade religiosa e a sua especificidade, são também aqueles que muitas vezes sofrem mais na pele as pressões da hierarquia, a falta de investimento, os parcos recursos… Faz-se muito bom jornalismo dentro dos órgãos de informação religiosa, procura-se a boa notícia, sem deixar de falar nas maçãs podres que se encontram neste e naquele ramo das árvores eclesiais. Quão bom seria se a Igreja compreendesse e desse mais relevo e meios a este trabalho tão essencial para o seu ministério… Desde logo, que o reconhecesse com a relevância que ele merece.
Ricardo Perna é jornalista da Família Cristã e tem acreditação permanente na Sala de Imprensa da Santa Sé.