Na quinta-feira, 3 de fevereiro, foi apresentado o livro Pensar à Frente – Corporeidade, Desporto, Ética, Cultura e Cidadania (ed. Afrontamento), que reúne vários estudos sobre Manuel Sérgio. Um deles é sobre a dimensão religiosa dos acontecimentos desportivos, da autoria de Joaquim Franco. O 7MARGENS publica aqui alguns excertos desse texto, numa versão preparada pelo próprio autor, e que pode ajudar à reflexão sobre este tema, n altura em que também decorrem os Jogos Olímpicos de Inverno, em Pequim. Do mesmo livro faz parte também um texto sobre “Ética desportiva: um caminho para a transcendência”, da autoria de José Lima, do qual publicámos já também alguns excertos.

Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016: “A consagração dos heróis implicava uma pausa na banalidade do quotidiano.” Foto © Fernando Frazão | Wikimedia Commons
Na aproximação do mês de Agosto, a cidade-estado de Élide, onde se localizava Olímpia, enviava arautos pela Grécia a anunciar as tréguas sagradas para os jogos. E nem os perigos do inimigo, em tempo de guerra, se sobrepunham à competição. A consagração dos heróis implicava uma pausa na banalidade do quotidiano. Na Era mediática, são os media que anunciam e garantem as tréguas para os Jogos Olímpicos, ou de qualquer outro grande evento desportivo desenhado pelas modalidades mais populares.
Na antiguidade clássica, os jogos distinguiam-se pelos deuses a celebrar, pelas provas a disputar e pelo calendário. Impunham rotinas, com os respetivos ritos religiosos e civis. As diversas provas desportivas, nacionais, supranacionais, regionais ou continentais, têm hoje também a capacidade de moldar ritmos e agendas mediáticas. Os gestos e os símbolos recriam a natureza religiosa das origens e a sua força paralisante.
A expectativa começa a ser construída antes, na preparação técnica dos “heróis” e na organização multimilionária do palco. A própria escolha do local das grandes competições é uma festa mediática que antecipa a festa em si.
A “religião” dos Jogos e das competições desportivas

Cerimónia de abertura dos XXIV Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim: “Uma liturgia que ecoa consensualmente.” Foto © Gabinete Executivo do Presidente russo/Wikimedia Commons.
(…) Nas modernas e mediatizadas competições desportivas, em especial nas cerimónias de abertura dos Jogos Olímpicos, há uma liturgia que ecoa consensualmente. Estão lá quase todos os elementos de uma religião e a ampliação mediática é um investimento que reconstrói a emoção da pureza, o sonho do ideal desportivo em que todos são iguais na oportunidade, apesar da diferença real das capacidades que a competição há-de revelar, em conjunto com a imprevisibilidade. A técnica, cada vez mais determinante, faz parte da preparação do atleta. A imprevisibilidade não é do seu domínio. O “sobre-humano” conjuga-se também com a surpresa do imprevisível. Nesta luta individual ou coletiva pela superação, constroem-se narrativas quase míticas, de transcendência e fé na procura da Perfeição, e transportam-se expressões de superstição. Em contexto religioso, o acaso pode ser ocasião. Em ambiente de competição desportiva, o vento, o sol, a chuva, os poucos milímetros do poste de uma baliza ou da pegada de um salto em comprimento, podem fazer a diferença entre a coroa da vitória e a resignação da derrota.
O “culto” faz-se também com ritos e sinais visíveis que expressam, no simbólico, uma prática e preparação quase ritual e disciplinada, como a exigente preparação de um atleta.
Noutro gesto “cultual”, a chama olímpica – símbolo do fogo mítico que o astuto Prometeus roubou a Zeus, primeiro dos deuses Olímpicos, para o entregar aos mortais garantindo o fluir da existência humana – é recuperada ao sol grego de Olímpia, de quatro em quatro anos, para fazer um circuito de celebração e se agigantar no local sagrado dos Jogos – não o local como espaço físico e arquitetónico, mas o estádio com a presença humana, consagrado por cativar olhares e atenções do mundo -, com variáveis de espetacularidade, sujeitas à criatividade do “liturgista” organizador.
O desfile de delegações, como a entrada de equipas e atletas em espaço de competição, segue uma ordem pré-definida. Há uma interação entre os atletas e o público, no local ou através das câmaras de televisão.
À semelhança do efeito político congregador na antiguidade, os discursos e os símbolos podem também transformar as competições desportivas numa plataforma política.
A música é outro elemento de “sacralização”. Dos hinos nacionais aos hinos criados para as competições, ou às fanfarras olímpicas que eternizam o momento. Até os balneários, em certos contextos, são “sacristias” para preparar superações.
“Brilha ao longe a glória de Pélops, nas lides Olímpicas, onde se disputa a rapidez da corrida, a audácia da força”, canta Píndaro na Iª Ode Olímpica. Os heróis desportistas da Era mediática são universalmente entronizados – não conta a raça, género, origem, gostos ou religião. Quando os atletas entram ritualmente num estádio ou em qualquer espaço de competição desportiva, não há diferenças. Protocolarmente identificados da mesma forma, percorrem os mesmos metros, vislumbram a mesma moldura humana nas bancadas, sem vencedores antecipados. Vitória e derrota definem-se na competição.
O futebol como “liturgia” da identidade portuguesa

O treinador Fernando Santos, da equipa principal de Portugal, no Euro 2016: “O quotidiano português é pautado pelos ritmos da competição no futebol.” Foto © UEFA
O quotidiano português é pautado pelos ritmos da competição no futebol, o mais popular e mediático dos desportos. Milhares enchem estádios aos fins-de-semana num culto catártico que ecoa pelas rádios, domina alinhamentos de telejornais e enche páginas na imprensa. As contingências sociopolíticas do século XX levaram à constatação de um país dominado por três «efes» – Fado, Fátima… e Futebol. A própria heráldica desportiva envolve-se numa simbologia religiosa, identitária.
Não é só ao mais alto nível competitivo e mediático que o futebol português tem sucesso. O clero português tem somado também resultados de relevo. A paixão pelo futebol passa pelos seminários e pelas paróquias, ao ponto de haver anualmente um torneio de futsal para padres portugueses, do qual sai uma seleção nacional. (…) O papa Francisco comparou já a experiência da fé a um… Golo – o «louvar a Deus», como disse em janeiro de 2014 numa homilia na Casa de Sta Marta. Adepto do San Lorenzo de Almagro, um dos grandes do futebol argentino, Bergoglio sabe o que é festejar um golo nas bancadas. À sacralidade simbólica do evento desportivo, junta-se a vivência, individual ou coletiva, do sagrado e da fé.
O Europeu de Futebol de 2016, que trouxe aos portugueses uma alegria inédita, transportou também esta dimensão. A serenidade de Rui Patrício enquadra-se numa experiência de meditação, uma prática de vida baseada na criação “de uma fórmula intemporal que indica tanto o objetivo, como o caminho para o atingir”. Vale a pena rever o guarda-redes nos minutos dos pontapés para desempate, da marca de grande penalidade, num jogo contra a Polónia, e perceber o valor da concentração.
No banco, vimos em várias ocasiões o treinador em oração, fechando os olhos e agarrando nas mãos o símbolo da sua devoção – a cruz. Membro do movimento católico dos Cursilhos de Cristandade, Fernando Santos transporta a fé para a vida de forma pragmática. A carta que deu a conhecer depois de ganhar o torneio, onde previamente apontara a “certeza” da vitória, é um testemunho da força de uma convicção religiosa, que atribui à fé cristã o papel que pode ter, também no desporto. Santos sentiu-se “iluminado e guiado”, mas enquadra o conceito de omnipotência na vontade e no esforço dos homens. A vitória, que representou na prática também a derrota de outros, não resulta da manifestação de um Deus castigador que decide e impõe. Contando também com o acaso – que simbolicamente ganhou contornos de hierofania quando a bola foi ao poste da baliza de Patrício nos últimos minutos do jogo da final -, é fruto de muito trabalho, engenho e abnegação. (…)
A prática desportiva como testemunho de um “mais além”

Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro 2016: “A virtude do atleta vê-se pela sua capacidade de superação.” Foto © Fernando Frazão/Wikimedia Commons.
A competição desportiva tem, na sua origem, uma dinâmica religiosa. De transcendência e de ética. Kalos kai agathos – Belo e Bom, diziam os gregos.
A virtude – arete – do atleta vê-se pela sua capacidade de superação. Pelo (des)encontro com os (im)possíveis. O atleta prepara-se, com técnica e tática. Mas nem tudo depende dele e ele sabe disso. A glória passaria pela vontade dos deuses. O melhor, o mais bem preparado, estaria sempre mais próximo da vitória, mas a intervenção divina era determinante.
Outras culturas religiosas desenvolveram a ideia de intervenção divina na história. No monoteísmo hebraico, a astúcia de David vem do “alto” para derrotar Golias. Era na conjugação de duas vontades, a humana e a divina – thelema – que desenhavam a explicação dos feitos heróicos e proféticos. Num percurso de valores e significados, representa mais do que o esforço físico e anímico de um atleta. Pela imprevisibilidade – que garante o princípio da competição – constroem-se estádios, concentram-se multidões, fazem-se celebrações planetárias, ouvem-se hinos, sobem bandeiras, erguem-se taças, promove-se a autoestima.
Se o pensamento religioso clássico depositava a explicação para o imprevisível na moira – o destino traçado pela intervenção direta dos deuses –, a razão cruzada com a fé diz-nos que ganhar e perder faz parte do equilíbrio da contingência humana.
(…) Acreditar, em contexto desportivo, com enquadramento religioso ou não, pode ter um valor que ultrapassa a mera razão da técnica ou da tática. Não é apenas vontade ditada pelo querer e pela evidência das capacidades. É impulso de superação, em livre-arbítrio, para lá do explicável no momento, ampliando e conjugando o que à primeira vista nem se vislumbra, elevando os limites, libertando o corpo do imediato e da imanência, para celebrar uma energia vocacionada para um mais além.
Sublinhe-se a reflexão de Gonçalo M. Tavares, quando equaciona o esforço físico relacionando-o com a capacidade humana do livre-arbítrio. “Um corpo vivo que joga diz ao mundo – tenho tanta energia (isto é: estou tão vivo) que até a posso desperdiçar” (Gonçalo M. Tavares, Jogo e Ficção – Transcendência ou Luxo, in Desporto, Ética e Transcendência. Porto, Afrontamento, 2016).
O mesmo princípio poderá aplicar-se aos caminhantes em peregrinações religiosas que testam os limites da capacidade física, ampliados pela força de uma devoção que sustenta a vontade.
O homem não é só “um animal coberto de uma camada superficial de funções intelectuais”, há uma “dimensão espiritual” que intervém quando o corpo se manifesta (Manuel Sérgio, Para uma epistemologia da Motricidade Humana, Lisboa: Nova Veja, 2018).
Joaquim Franco é jornalista e trabalha na TVI.