Fr. Agostinho da Cruz, professor da liberdade (e o seu último poema, quase “inédito”)

Vivendo numa época de grande crise, escolheu o confinamento como via de purificação. Tendo uma vida cheia de sucessos à espera, beneficiando dos contactos estreitos que tinha com a mais alta nobreza e a Casa Real, escolheu a mais pobre das ordens religiosas para se fazer frade, não se conformando com o mundo. Aos 20/21 anos de idade, seguiu o exemplo de São Francisco de Assis e ingressou na Ordem dos Frades Menores, escolhendo o mais despojado dos conventos, em Sintra. Ali esteve 45 anos, remendado, descalço, quase solitário, reduzindo-se ao essencial. Teve, todavia, sempre um objectivo: fazer-se eremita na Arrábida e aí praticar o mais radical isolamento contemplativo.
A chegada da velhice deu-lhe tal prémio. Aos 65 anos rumou para a “serra das estrelas tão vizinha” e aí viveu numa choupana e, depois, numa pobre cela afastada, junto da Ermida da Memória, encontrando na “liberdade” o seu “melhor manjar” que consiste, segundo afirma, em “ter saudade de Deus”. Os primeiros sete anos foram difíceis; foi expulso pelo menos três vezes por quem o não entendia. Só nos últimos sete anos de vida teve paz na Arrábida. E aí ficou sepultado, na igreja do convento, na sequência da sua morte em Setúbal (14/3/1619).
Neste tempo rigoroso e exigente que vivemos, Frei Agostinho ensina-nos o que é essencial. Ao contrário do que possamos pensar, não é o convívio, não é o gozo do sucesso ou do consumo, nem é a riqueza acumulada ou exibida, não é viajar ou corrermos de um lado para o outro. Para o frade-poeta, a melhor parte está no encontro com a divindade em tudo quanto nos rodeia, na contemplação dos pequenos nadas que afinal são tudo, na valorização da sede como ânsia de beber a “água viva”. Saibamos aprender com ele, lendo-o e meditando-o.
Assinalando o dia do seu 480º. aniversário, publicamos um soneto de sua autoria. Não é inédito, embora tenha algumas pequenas variantes. A partir da leitura do seu manuscrito, até há pouco desconhecido, sabemos que foi o último poema que escreveu.
Estes são os últimos versos
que fez frei Agostinho em sua
vida porque daí a poucos dias
morreu
Ancorou-me a velhice no remanso
deste mar oceano largo e brando
onde não tenho já que andar remando
nem querer noutra parte milhor lanço.
Neste repouso meu em que me lanço
e me levanto sempre desejando
as forças se me vão acrescentando
pera alcançar um bem que não alcanso.
E tendo já no mar ferro lançado
a confiança minha não se altera
por mais que o bravo mar vejo alterado
antes mais firme e forte persevera
que quem só no seu Deos tem ancorado
do bem se logra já que ter espera.
Ruy Ventura é escritor, ensaísta e investigador, e organizador da Antologia Poética de Frei Agostinho da Cruz.