Em Agosto 2017, a propósito dos 50 anos de ordenação do padre Arlindo Magalhães, presbítero da Comunidade Cristã da Serra do Pilar que morreu esta semana (ver notícia no 7MARGENS), Joaquim Félix Carvalho foi convidado a fazer uma reflexão sobre a experiência desta comunidade de Gaia.
É esse texto que a seguir reproduzimos.

O padre Arlindo Magalhães. responsável da Comunidade Cristã da Serra do Pilar. Foto © Palma Gonçalves, cedida pela autora.
1. Apreender a viver no mundo novo, que não pode esterilizar nem poluir a imaginação, é hoje um dos maiores desafios que se coloca à Humanidade. Sim, imaginar para além das corrupções, e da sua sujidade, que sempre podem existir à semelhança do pó que habita uma casa limpa, mesmo se lavada cada semana, ou do desarrumo nos ateliers dos artistas. Alargar o imaginário do mundo, que nos é dado para cuidar na máxima e delicada responsabilidade, tornou-se agora uma urgência civilizacional, como aliás sucedeu em várias épocas históricas.
Porque criei este relevo? Porque este desafio pode ser sempre partilhado pelos discípulos de Jesus de Nazaré, o Cristo. Eis porque todos nós, sua Igreja, somos chamados na assembleia do Seu corpo, a gerar sob o impulso do Espírito Santo um novo imaginarium, que Deus potencia na sua liberalidade e abençoa. Daquilo que me apraz considerar no padre Arlindo, esta é a primeira nota: ele sempre se preocupou em fazer exercícios de dilatação do imaginário da teologia da Igreja, e a tentar ir além dos esboços do pensamento até aos riscos de uma prática, aprendida por tentativa e erro, a superar os limites estreitos de paradigmas instituídos, por ‘improvisações’ melódicas de um canto eterno, de uma polifonia que não exclui voz alguma.
2. Desde as águas e da amizade que as precede, o padre Arlindo procura assentar as suas procuras nas raízes e desenvolvimentos de uma iniciação aos santos mistérios, comprometendo-se com o processo do ‘fazer-se’ cristão. A iniciação cristã tornou-se-lhe um itinerário irresistível. Água e fogo do batismo, unção do Espírito do Pentecostes e alimento eucarístico são vias percorridas em sínodo desde há muito, e até em mim abriu o horizonte de uma teologia ex visu, contemplação in loco, de vários batistérios paleocristãos em Portugal: Torre de Palma, Idanha-a-Velha, Conímbriga, Mértola, etc.
Além da arquitetura dos espaços da iniciação, o padre Arlindo preocupou-se sempre com a arquitetura e as artes para a liturgia. Disso dá testemunho, por exemplo, a disposição do espaço da igreja da Serra do Pilar. As visitas exploratórias em vários países do centro da Europa encontram-se inscritas nesta sincera recriação estética do corpo de Cristo no espaço, presente na assembleia celebrante. Ele sabe que, como escreveu L. Bouyer em Arquitetura e Liturgia, «A maneira como construímos as nossas igrejas constituirá a manifestação por excelência da qualidade da nossa vida eclesial, da nossa vida de comunhão no corpo de Cristo.» Com ele partilhamos esta procura, onde encarna a epifania do corpo de Cristo, na promoção da qualidade da vida da Igreja. E, nesse sentido, foi por nós refletida a experiência das novas construções e reabilitações das capelas dos Seminários Arquidiocesanos de Braga, visitadas pela Comunidade da Serra. Tal é o seu gosto que me desafiou a adquirir livros sobre esta matéria, como sucedeu, por exemplo, com as milenares igrejas vikings da Noruega, que tive oportunidade de estudar in loco, na companhia dos membros da equipa do Seminário e guiados por Asbjørn Andresen.
3. O Corpo de Cristo não é visível somente nas igrejas, mesmo que nelas a sua epifania possa esplender melhor na liturgia. Grato por um sábio conselho, que a todos pode beneficiar, o padre Arlindo, após o trabalho no Seminário da Sé, fez-se sócio de muitas associações da paróquia, nos círculos centrípetos da igreja da Serra. A sua saída para os polos seculares da vida comunitária, de providencial forma, inscreveu-o nas fronteiras avançadas da evangelização. Disciplina que, desde há anos, leciona aos finalistas do sexto ano do Seminário Conciliar e da licenciatura canónica em Teologia Pastoral da Faculdade de Teologia – Braga. E, pela sua experiência pastoral, pedimos-lhe para receber, no último ano, alguns dos nossos futuros pastores, a fim de os ‘contaminar’ na sua paixão pelo serviço do Povo de Deus.
4. O serviço na Igreja, tantas vezes dialogada entre nós, numa trama que combina bom humor, esperança e imagens novas, em perfeito exercício da condição profética recebida pelo batismo, permite-me pensar que o padre Arlindo tem uma propensão para cuidar da sua ‘esposa’ de modo muito artesanal, isto é, na densidade de todos os artistas que, de forma simples, honesta e verdadeira, encheram a sua casa de ‘criações’, desde logo da ceramista Rosa Ramalho, cujo Cristo é muito mais acreditável do que tantos discursos vazios e Pseudocristos kitches. Só o cachecol do Vitória de Guimarães, colocado junto à porta de entrada, revela as suas origens vimaranenses. Mas o seu clube de coração é mesmo só o de Cristo, de cuja caridade pastoral participa, nos salmos existenciais da sua dedicação às pessoas que lhe foram confiadas de muitos modos, e não apenas na Serra do Pilar.
5. A vida do padre Arlindo daria uma longa-metragem! Não sou crítico de cinema, para avaliar a narrativa da sua vida como ator principal. Talvez ele não tenha a distância desejada para fazer uma nota dela para a Voz Portucalense. Mas, quem sabe, será suficiente contracenar com ele a vida de quem se descobre a caminho de Jerusalém.

6. De padre para padre, aquilo que mais desejo, na comemoração deste meio século de ministério ordenado, é que Deus lhe conceda a graça de perseverar até ao fim no cumprimento da sua vontade, ao serviço do altar e do povo fiel. E para ser mais explícito, louvo o Senhor, parafraseando, e em parte citando, palavras do prefácio da ordenação dos presbíteros: no exercício do seu ministério, saiba que Deus o escolheu «para renovar em seu nome o sacrifício da redenção humana, preparando para os seus filhos o banquete pascal, para orientar o seu povo com diligente caridade, e alimentá-lo com a palavra e fortalecê-lo com os sacramentos» (Missal Romano, 1088). Permaneça sempre aberto à bênção de Deus, que instituiu a Igreja e a governa; Ele o defenda continuamente com a sua graça, para poder realizar com fidelidade o serviço da alegria do evangelho. Ele o torne, no mundo, servo e testemunha da caridade e da verdade divina, e ministro fiel da reconciliação. Ele o faça verdadeiro pastor, para que distribuindo aos fiéis o pão da palavra e da vida, eles cresçam mais na unidade do Corpo de Cristo. (Pontifical Romano, Ordenação dos Presbíteros, 95).
7. Queria terminar com uma frase que pode soar a provocação, como imagino que o padre Arlindo tantas vezes poderá ter sido interpretado: «A ausência de risco é sinal seguro de mediocridade». A sentença é de Charles de Foucauld. O evangelho de Jesus é mais do que uma segurança, não é? Sem cuidar que seja perfeito, nem imperdoável, já viram a mediocridade no padre Arlindo? Para mim, o padre Arlindo continua a ser despertador da esperança cristã, e, como padre, a dar-me entusiasmo para perseverar na firme vontade de Deus no serviço do seu povo. Duas coisas me impressionam na igreja onde celebra, para além do Santíssimo: a disposição do Corpo de Cristo, quando se celebra em assembleia os seus santos mistérios e, à porta, a caixa da caridade. Mais ainda, os anjos devem ter perdido por lá um caderno de músicas. E não pense que isso aconteceu só quando por lá passou o Coro de Câmara de Gotemburgo, cujo acolhimento muito agradeço ter acontecido na forma que melhor prezo.
William V. Dych diz que «existe una conexão muito necessária e intrínseca entre a reflexão teológica sobre Deus e a vida de imaginação» [W.V. Dych, «Theology and Imagination», in Thought 57 (1982), 116]. A imaginação, segundo o Papa João Paulo II na carta que escreveu aos artistas, ajuda os poetas, os artistas e todos os buscadores da verdade a descobrir os abismos humanos, e a teologia ajuda a mostrar como Cristo os ilumina e atravessa a todos. Continue, padre Arlindo, a alargar o imaginário da Igreja através da luz de Cristo; na sua poesia, verdadeira como é, mostre-a à humanidade tal como é.
Joaquim Félix é padre católico, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga e professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa; autor de vários livros, entre os quais Triságia.