A Editorial Franciscana prossegue o seu importante labor de publicação das chamadas Fontes Franciscanas, apresentando-nos agora o seu quarto volume. Depois dos volumes dedicados aos escritos e legendas de São Francisco (volume I), de Santa Clara (volume II) e de Santo António (volume III), o volume agora publicado regressa ao Santo de Assis, com um conjunto de Crónicas sobre os inícios dos Frades Menores e alguns Documentos de fontes externas à Ordem.
Toda a tradição escrita em torno à figura de Francisco de Assis se assemelha mais a um sonho do que a factos jornalísticos – sabendo nós, tanto pela psicologia moderna como pelos estudos bíblicos, que o sonho, o mito, a fábula, a parábola, a narrativa literária, o milagre ou o símbolo nos aproximam bem mais da verdade geradora e criadora do que as cinzentas páginas a preto e branco da moderna historiografia. Mil anos depois, parece que o Evangelho voltou a encarnar, também num tempo – o século XIII – de globalização e de pandemias como o nosso.
Ainda que provendo dados históricos fiáveis para a compreensão da evolução da Ordem Franciscana, as Crónicas agora disponibilizadas em português fornecem sobretudo uma visão teológica da vida de Francisco e dos seus companheiros, à luz da vida da Igreja do seu tempo. Vemos os numerosos milagres associados à passagem de Francisco – na sua vida como já depois da sua Páscoa – como um advento renovado do Messias junto dos mais pobres, débeis e marginalizados; um regresso ao Evangelho, entre a busca da simplicidade e da pobreza mais radicais – a nudez pura de Francisco diante do pai, as pobres capelas restauradas pelas mãos do próprio Poverello – e as dinâmicas próprias de uma Fraternidade em rápida expansão, cujos ministérios da pregação e da penitência pedem o estudo, a estrutura, a diplomacia. Pelo meio, surgem-nos pérolas de uma vida enamorada:
“O procurador dos irmãos, escolhido pelos habitantes, perguntou a Fr. Jordão se queria que lhes construísse um edifício em forma de claustro. Como nunca tinha visto um claustro na Ordem, este respondeu: – Não sei o que é um claustro. Edifiquem-nos simplesmente uma casa perto do rio, para que possamos lá ir e lavar os pés. E assim se fez” (p. 135).
Indicam-nos os primeiros biógrafos de Francisco que a oração ou meditação se dava, com frequência, junto da Natureza. Não será por acaso que a tradição nos oferece a imagem de um Francisco a dialogar e a realizar sinais e prodígios junto dos animais, até chegar à plenitude poética do seu hino Louvado sejas. A par das velhas capelas, da pessoa do pobre – a quem Francisco busca, com todas as suas forças, converter-se – e da Natureza, encontramos a Cruz de Jesus. É aí, onde o Redentor se encontra mais despojado de todos os sinais messiânicos – da coroa de espinhos à túnica sorteada, da ausência dos discípulos à expulsão da Cidade Santa (cf. Carta aos Hebreus 13, 12) – que mais encontrará Francisco as lágrimas que purificarão quer os seus desejos juvenis de diversão, quer as tentações adultas de uma penitência farisaica, distinta da humilde confissão cristã do pecado. Francisco busca a nudez de um encontro com o Crucificado, e por esse encontro não deixará de caminhar toda a sua vida, e de enviar os seus companheiros em missão, dois a dois. Caminhar é um verbo literal: as interpretações dos textos evangélicos e das regras canónicas são um desejo de estabilização.
A presença dos irmãos (frades) mendicantes e itinerantes nos caminhos da Europa medieval faz parte do nosso imaginário coletivo. Muito de humano encontramos nestas Crónicas ou Documentos, numa Igreja medieval que se recentra na figura do papado graças aos processos de globalização que já então se viviam. O Corpo estigmatizado de Francisco, a sua pregação evangelicamente nua, dão lugar a uma fecundidade comunitária que o ultrapassam rapidamente.
Hoje já não é possível cairmos numa ingénua compreensão da história segundo a lógica do paraíso perdido, das origens perfeitas e da sua posterior desvirtuação em nome de uma vida religiosa excessivamente mundana: o que encontramos nestas Crónicas são o relato fiel, porque não apenas historiográfico, de uma aventura humana que se tornou fonte de inspiração para o atual Papa e o seu magistério, com tudo o que de humano contém.
Para lá de uma superficial moralização ou de uma simplificação ingénua, a vida de Francisco pede ao leitor o difícil e fecundo trabalho do encontro com vestígios de uma Presença radicalizante, de uma Mística capaz até de impressionar (ainda que não converter…) papas, imperadores e sultões. O regresso ao essencial é exigente: pede o abandono das distrações, justificações, seguranças, e até das graças:
“[Frei Gil, quarto irmão da Ordem] dizia: Magna gratia est non habere gratiam: é uma grande graça do céu não ter graça nenhuma; e tinha a intenção de se referir não às graças infusas, mas às adquiridas, pois por causa delas, não são poucos os que levam má vida” (p. 409).
São Francisco de Assis, Crónicas Franciscanas, Documentos estranhos à Ordem
[Fontes Franciscanas IV].
Edição: Editorial Franciscana, 536 páginas