Nestes dias que impelem os católicos à introspeção e à ação, fomos a Alvito, no Baixo-Alentejo, conversar com Francisco Fanhais, cantor, companheiro de José Afonso, de quem ainda hoje se ocupa todos os dias, presidindo à direção da Associação que leva o seu nome.
Nesta entrevista de vida, de que hoje publicamos a primeira parte, Francisco Fanhais conversa sobre o modo como vê a Igreja nos dias de hoje, partilhando connosco o olhar de um padre suspenso de funções desde antes do 25 de abril. Fala-nos ainda da sua história de vida, desde a vocação descoberta na infância, aos tempos de Seminário e de exercício de funções pastorais ainda durante a ditadura do Estado Novo, da influência que recebeu do padre Felicidade Alves, da amizade com José Afonso até ao tempo do 25 de abril de 1974, chegando ao seu labor nos dias de hoje, aos 82 anos de idade, que completa no dia 17 – embora nem a aparência nem a vivacidade da palavra o revelem. Uma entrevista com banda sonora. Entrevista conduzida por Maria do Sameiro Pedro.

Francisco Fanhais: “A perspetiva que mais me agrada é, de longe, a que é dinamizada pelo Papa Francisco.” Foto © Maria do Sameiro Pedro
7MARGENS – Como é que aquele que um dia foi o Padre Fanhais vê a situação da Igreja hoje, em particular da Igreja portuguesa?
FRANCISCO FANHAIS – Sinto que há uma espécie de duas Igrejas, uma virada para a frente, outra virada para trás. Essa que está virada para a frente é aquela que tem como sua figura mais dinâmica e mais apreciada por todos nós o Papa Francisco, obviamente. Desde esse ponto de vista, não me considerando dentro da Igreja oficial, nem colaborando, mas vendo-a de fora, penso que é um raio luminoso de luz que apareceu nestes últimos anos dentro da Igreja, essa figura espantosa que é o Papa Francisco. Que, ao querer avançar com as coisas dentro da Igreja, criou também, simultaneamente, anticorpos de gente para quem, se calhar, a figura dele avança depressa demais, no sentido de transformar e modificar coisas dentro da própria igreja. Mas penso que isso é comum a todos os movimentos e a todos os tempos.
Há sempre alguém que aponta para a frente e há sempre alguém que, vivendo, sendo contemporâneo, vira mais para trás, olha mais para trás. E essas pessoas entristecem-me um bocado: têm saudades de um tempo em que as coisas não eram como são agora. [Traduzem] aquela imagem que uma vez ouvi de alguém: “É gente que caminha para o futuro de costas”. Ou seja, o túnel, a luz, está ali, mas eles avançam para a luz de costas, em vez de avançarem de peito feito, de serem abertos, sensíveis, ansiando e sendo cúmplices nas transformações e nos melhoramentos. Dentro da Igreja passa-se isto. É claro que a perspetiva que mais me agrada é, de longe, a que é dinamizada pelo Papa Francisco.
7M – Ou seja…
Eu vejo com todo o entusiasmo todas as iniciativas, todos os movimentos que sejam no sentido de fazer a Igreja encarnada nos tempos de agora. Portanto, tudo que seja contrariar esta tendência, olho com olhos um bocado… às vezes até me fazem uma certa impressão, até me revoltam.
Não estando dentro da Igreja e não sendo cúmplice ativo nesta dinamização, neste avançar da Igreja, continuo a ser sensível a todos aqueles que reagem contra estes avanços e esta atualização que a Igreja pretende alcançar hoje. Depois há movimentos como os neocatecumenais… – não entendo como é que é possível haver alguém justamente que quer caminhar para o futuro de costas. A imagem que me vem mais à cabeça é justamente esta de pessoas que não têm outro remédio, porque estão vivas mas não acompanham o progresso nem o dinamismo, nem a abertura para os novos tempos e para a Igreja do futuro.

7M – E como vê o Papa?
Olho com muita alegria para o Papa Francisco que, sendo Papa, puxa pela Igreja e puxa por todos nós e é um apelo constante a que sejamos cada vez mais representativos da figura de Jesus Cristo, sejamos cada vez mais o testemunho dele. Nessa perspetiva, sinto-me interpelado porque, tendo sido padre no ativo, não deixo de me considerar cristão e, para mim, o essencial de tudo isto e da minha perspetiva em relação à Igreja e ao cristianismo é justamente a figura de Jesus Cristo.
Por isso, sinto-me cristão comprometido; nunca escondi, nem nunca escondo, onde quer que vá, que sou cristão e que para mim a figura central de tudo isto é a figura de Jesus Cristo, a maneira como ele viveu e a maneira como ele morreu. Portanto, sempre que encontro alguém para quem esta perspetiva diz alguma coisa, aí sinto-me acompanhado e sinto que vou descobrindo permanentemente companheiros, novos companheiros. É isso que me faz manter vivo, digamos assim, e ser otimista. Apesar de todos os movimentos contra e de todas as marchas atrás que possa haver, sinto-me otimista, porque isto não pode… É uma tempestade. É difícil parar uma onda com esta força, com esta energia, a tal que o Papa nos transmite, não é?
7M – É o horizonte de esperança que os cristãos festejam neste tempo da Páscoa, não é?
Exato, exato. Embora eu… perdi de referência certas datas; às vezes digo “é verdade, para a semana é a Páscoa”. Quer dizer, deixei de ter uma referência explícita, não pego num calendário com a preocupação de saber. Não está na minha preocupação imediata, mas depois quando aparece… Por exemplo, fui ordenado uns dias antes de Quinta-feira Santa e celebrei a Missa Nova na Quinta-feira Santa de 1965. Quando chegamos a este dia, vem-me sempre à memória, obviamente, o saber que foi nesse dia que eu, pela primeira vez, em público, assumi a minha condição de cristão, de padre, na freguesia de Benfica, em Lisboa, onde eu morava.
7M – Até porque o desejo de ser padre, de ir para o seminário, manifestou-se muito precocemente, não foi?
Muito, muito precocemente. Eu tinha 10 anos, quando, tendo acabado a quarta classe, o meu pai e a minha mãe, católicos, praticantes e fervorosos, me disseram “Então, agora como é? Agora vais para o liceu?” e eu disse “Eu quero ser padre”. O meu pai e a minha mãe olharam um para o outro. “Queres ser padre?” E eu: “Sim, sim.”
Para mim, o que era ser padre? Não era nada especial, era imitar um coadjutor que havia na paróquia do Entroncamento, onde eu morava, que era um tipo bestial connosco: dava catequese, jogava à bola, dava prémios na catequese (fiozinhos disto e medalhinhas daquilo), bem-disposto, alegre, comunicativo. Caiu-me tanto no goto a figura daquele homem, que disse “para mim ser padre é ser com ele”.

7M – Isso é muito curioso: frei Bento Domingues também conta que o desejo dele veio do exemplo de um padre dominicano que ele conheceu em menino e também teve essa reação de querer ser como ele.
É “ser como ele”, é um puro fenómeno de imitação.
7M – Mas o que começou por imitação não há de ter continuado assim?
Claro que não. Foi uma tristeza muito grande quando a minha mãe me viu vestidinho de preto: a calça, o casaco, a gravata e a camisa branca, porque era assim que se entrava para o Seminário. Tínhamos de nos vestir a rigor. Foi uma tristeza enorme, eu de bibe e calção até aí assim, quase, entrara naquilo… Mas os meus pais aceitaram perfeitamente, embora lhes tivesse doído um pouco, mas era essa a minha vontade. Eram esses também os desígnios, a vontade de Deus se calhar – interpretaram isso assim, e foi assim.
Claro, à medida que nós vamos estando no seminário, as razões vão-se alterando. A própria estrutura do seminário, os padres, tudo aquilo que o seminário transmite na formação vai sempre no sentido de cada vez mais as pessoas encontrarem novas razões que não aquelas de ser um puro fenómeno de imitação do Padre Gonçalves, que era o coadjutor no Entroncamento. Vamos modificando, aprofundando, refletindo, vamos amadurecendo, vamos optando, vamos escolhendo todas as razões para podermos ser, para nos justificarem a continuação da vocação.
7M – Até porque acompanha uma etapa da vida de muita transformação, com a adolescência…
… a juventude, a entrada na idade adulta. Sim, sim, sim. Mas eu sempre fui encontrando para mim próprio razões cada vez mais profundas e mais sérias. Mais sérias – não é que as outras não fossem –, mas mais profundas e mais substanciais para querer continuar, porque às vezes também se me punha a ideia… Havia colegas meus que saíam do seminário, porque diziam “não quero mais”. Também se me punha esse problema, mas eu não; mantive sempre esta vocação, as razões para continuar sempre no seminário. E os anos em que fui padre no ativo, chamemos-lhe assim para facilitar, foram anos de profunda convicção e de gosto por aquilo que era a minha função e a minha missão de padre.
Dei aulas de Moral durante os últimos tempos, três anos no Barreiro. E o gosto que eu tinha em falar de Cristo nas aulas! E não só: nas minhas aulas, falávamos de tudo e até de religião. Mas falar da figura de Jesus Cristo a gente nova, aos miúdos, cantar com eles, etc., sempre foi uma coisa que me seduziu.

7M – Mas a dado passo alguma coisa mudou…
Uma pessoa vai desenvolvendo a sua personalidade, vai-se situando como cidadão também no país em que vive. Não só como cristão, mas também na outra dimensão que nunca nos deixa, que é a dimensão de cidadãos. A pessoa vai-se dando conta, em certa altura, do que se passa à sua volta, do ponto de vista político, do ponto de vista social. E aí começa a haver problemas.
Eu estava no seminário em 1961 quando começou a Guerra Colonial. E aí assim pôs-se-me a questão: como é que um cristão encara a Guerra Colonial? Capelães na Guerra Colonial, sim, se calhar, porque os soldados que lá estão também precisam de ser apoiados religiosamente, etc., etc.. E depois, a Guerra Colonial em si: haver capelães, uma pessoa ser quase obrigada a ir para capelão.
Depois, foi o contestar a Guerra Colonial. Contestar a ligação estreita e a cumplicidade perfeita entre a hierarquia católica e o Estado e o Governo e a situação política e os governantes, o Presidente do Conselho, Salazar, etc., etc.. Esta cumplicidade enorme que faz com que da Igreja, sabendo da Guerra Colonial, não haja uma palavra oficial coletiva de denúncia da Guerra Colonial.
7M – Foi algo que mexeu consigo…
Todas essas são situações que começam a dar-nos volta por dentro, às quais a pessoa tem de responder por si própria. Mas entretanto, não está sozinho nesta luta e nesta descoberta e nesta contestação. Porquê? Porque aparecem muitos outros colegas, muitos outros, com quem a gente conversa – e vamos tomando, em conjunto, a noção de que é preciso fazer qualquer coisa. Depois aparecem alguns que são mais dinâmicos, que puxam mais por nós, que são como leões que lutam de uma maneira perfeitamente forte e aguerrida e com toda a fundamentação. Foi o caso do padre Felicidade Alves. Ele foi aquele que puxou por nós, que denunciou, que entrou em conflito com a Igreja, justamente por denunciar esta cumplicidade. E para ele era impossível aguentar mais este silêncio cobarde, cúmplice, da Igreja, em relação ao que se passava com a Guerra Colonial.
7M – Aplicava-se o princípio “porque os outros se calam, mas tu não”.
Ora, aí está. Quer dizer, aplica-se perfeitamente o poema da Sophia, não é? Nós não nos podíamos calar. Não nos podíamos calar.
7M – De certa forma, o modelo continuava a ser Jesus, que também não se calou.
Completamente. Eu, nessa altura, passei a ter uma dupla razão, digamos assim, uma dupla motivação. Por um lado, como cristão, que não queria deixar de ser, que nunca deixei de ser, que espero nunca deixar de ser. Por outro lado, a dimensão de cidadão que, ao ver o que se passa, ao ver a situação, esta cumplicidade perfeita entre a Igreja e o Estado, não se pode calar também. Portanto, com o poema da Sophia, foi importante eu ter descoberto, como outros também, que “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar” tudo isso.
7M – Como a Canção da Cidade Nova, sobre a Nova Jerusalém.
Uiiii… Sim, sim, sim. Aquela canção, Jerusalém, essa é… Ai, ai, ai, se eu às tantas fraquejar… Há outras figuras que a gente encontra que não estão ligadas à Igreja diretamente, mas que nunca mais se esquece… [pausa]
Depois, neste percurso, nós vamos aprofundando as razões e vamos sendo auxiliados também por pessoas que são para nós uma espécie de farol, que nos mostram o caminho e ao qual nós aderimos porque as suas razões são profundíssimas e são seriíssimas. Foi o caso, por exemplo, do padre Felicidade, que foi para nós um leão, um combativo, que entrou em conflito com o cardeal Cerejeira na altura, justamente por causa das posições. Ele havia sido, professor de Teologia no Seminário dos Olivais. Era uma pessoa da confiança máxima do bispo no que toca à formação dos padres: professor de Teologia. Depois foi colocado na freguesia de Belém, nos Jerónimos e, ao princípio, continuou a sua linha de teólogo. Mas deu-se conta rapidamente de toda a situação que se vivia naquela paróquia, onde o Presidente da República ia à missa, onde viviam ministros, secretários de Estado, etc.. Todo o bairro do Restelo, toda aquela zona era muito dominada por pessoas ligadas ao regime. Então, ele apercebeu-se de que, de facto, havia qualquer coisa que não batia certo e começou a denunciar essa situação, de cumplicidade entre a Igreja e o Estado, ao ponto de Américo Tomás ter deixado de ir à missa aos Jerónimos, porque ouviu tantas ou tão poucas que deixou de lá ir à missa. O Felicidade foi para nós uma figura muito importante, porque deu-nos força para não desistirmos e não nos calarmos também.
7M – “Nós” seminaristas ou já padres?
Já padres, sim. Uma série de gente entra em conflito com o Cerejeira. Depois, às tantas, ele acabou por ser preso. Não sou capaz de reproduzir agora os pormenores todos. Mas teve, da parte de muitos dos padres dessa altura, uma solidariedade enorme.
Isto enquanto já era padre, mas houve outras figuras que também me marcaram. Por exemplo, lembro-me que ainda estava no seminário, no penúltimo ano do curso, em 1963, quando um padre me bateu à porta do quarto. Levava-me um disco pequenino e disse-me: “Tu que gostas de música, tu que gostas de cantar, ouve este disco, vais gostar de certeza.” Mas fez-me uma recomendação: “Mas ouves baixinho.” Era um disco do Zeca, do José Afonso, que tem Os Vampiros de um lado, e Menino do Bairro Negro, do outro.
7M – E ouviu e gostou?
Aquilo para mim foi uma revelação enorme, sabe? Porque a voz do Zeca, a poesia do Zeca, a música dele, tudo aquilo era um conjunto inesquecível, que apanhava uma pessoa. Portanto, aquilo para mim foi um murro no estômago. Eu pensei “como eu gostava de cantar o que este homem canta”. Até aí, o reportório que eu cantava era próprio do reportório religioso, obviamente: gregoriano, clássico e música coral. Mas para mim foi um despertar enorme, uma vontade enorme de conhecer aquele homem. O que só veio acontecer já alguns anos depois.
Foi em 1968 que eu conheci pessoalmente o Zeca. Antes foi só através da música dele. Mas depois foi uma coisa muito simples: um padre amigo tinha um grupo de jovens ali da zona de Torres Novas e organizou um espetáculo numa aldeia do concelho, Lapas. As Lapas têm umas grutas artificiais, que nasceram de tirarem pedras para a construção, suponho eu. Eram umas grutas, onde volta e meia havia iniciativas culturais. E um grupo de jovens, de que esse padre era dinamizador, organizou uma sessão cultural, com apoio da Câmara Municipal de Torres Novas. Esse padre Manel Tiago telefonou-me e disse-me: “Nós vamos aqui fazer um espetáculo, um serão cultural, convidámos o Dr. José Afonso, o Zeca, e gostávamos que também pudesses cá vir”. E foi aí que eu conheci pessoalmente o José Afonso.
7M – Foi um momento importante?
Esse espetáculo teve uma coisa importante, porque muito embora, o presidente da Câmara de Torres Novas, Fernando Cunha, fosse homem do regime, era aberto e, até certo ponto, aberto mesmo a contestar e ter reservas em relação ao regime. E ele disse: “A PIDE aqui neste espetáculo, só entra por cima do meu cadáver.” O que é facto é que a PIDE não entrou. Estávamos em 1968. “Não há presos políticos.”
Como a PIDE não entrou no espetáculo, o agente achou-se na obrigação, obviamente, de apresentar trabalho ao seu superior. E passado cerca de dois meses é que fez um relatório, dizendo “Só agora, passado a este tempo, é que é possível, depois de ter ouvido várias pessoas, relatar o que se passou nas grutas das Lapas, na noite de 28 de dezembro de 1968.” E eu fiquei a saber que foi no dia 28 de dezembro de 1968 que conheci pessoalmente o Zeca Afonso. Acho que é o único favor que eu devo à PIDE. [risos]
7M – E não ficou por aí…
Eu estava no Barreiro, continuei o contacto com o Zeca. Foi muito importante isso, porque percebemos que através da música queríamos a mesma coisa. Passou a ser um companheiro, o Zeca. E companheiro, para mim, até, digamos, referindo a etimologia da palavra, é aquele que come do mesmo pão. Cum pane. E quando a gente quer a mesma coisa – queremos a justiça para o nosso país, queremos liberdade, queremos a denúncia de tudo isto que está mal, etc., etc. —, portanto, comungamos do mesmo pão, nós somos companheiros.
É isso que vou sempre, sempre encontrando ao longo da vida, mesmo agora, quando converso com pessoas pela primeira vez e com quem sintonizo e com quem percebo que querem as mesmas coisas que eu, são novos companheiros que vou encontrando. E este grupo dos novos companheiros vai sendo cada vez maior. Isso é muito bonito e é muito bom.
7M – E tem uma matriz claramente cristã.
Sim, sim. Bem, claro, a certa altura foi o Zeca que me levou ao Zip-Zip.
E essa ida ao Zip-Zip, que foi em 1969, teve importância, porque a partir daí comecei a ser convidado para cantar em muitos sítios. Achavam graça um padre a cantar coisas e denunciar a Guerra Colonial, por exemplo. Tudo isso fez com que eu começasse a ter problemas, tanto do ponto de vista político, como do ponto de vista da hierarquia da Igreja.
As coisas marchavam em conjunto, porque sendo um cristão que quer ser cidadão de corpo inteiro também, apanha dos dois lados, sofre por tabela dos dois lados. E isso aconteceu. O padre Felicidade, entretanto, foi excomungado, entrou em conflito com a hierarquia e resolveu casar-se numa cerimónia religiosa, não oficial, digamos assim, num monte que fica em frente da ponte de Vila Franca Xira. Foi aí que houve uma cerimónia, um piquenique, onde, às tantas, ele e a Lisete – ainda é viva, fez 99 anos há pouco tempo, ele já morreu – se casaram. E nós estávamos lá presentes, um grupo de pessoas. E então, na sequência dessa minha participação, como outras pessoas, no casamento do Felicidade, eu fui chamado ao tribunal eclesiástico e a pena que me foi aplicada foi a de suspensão do sacramento da ordem.
Eu dava aulas de Moral no liceu do Barreiro. A gente falava de tudo, como eu já disse, e até de religião. Fui também suspenso de professor de Moral. Comecei a cantar coisas que não estavam de acordo com aquilo que a Censura deixava, com a teoria oficial do Governo sobre as colónias, etc.. Proibido de cantar. Fiquei com essas três proibições.
7M – Isso teve consequências…
Começou o conflito com a Igreja. Fui chamado a Tribunal Eclesiástico, mas não me retratei, por ter estado em Vila Franca de Xira nessa cerimónia sacrílega, como diz o decreto, do casamento do padre Felicidade. No Tribunal Eclesiástico devia responder a uma página A4 cheia de perguntas com uma letra muito miudinha.
Quando me foi pedido para responder, eu disse “Não, não me apetece, não tenho estômago para responder a isto tudo. As minhas respostas vão ser três frases pequenas. Ponto 1 – Estive presente – se não tivesse estado presente, se eu dissesse “não estive presente”, parava ali tudo; por isso, estive presente, sim senhor. Ponto 2 – Concordo com tudo que se lá passou. Ponto 3 – Estou solidário com todos os que lá estiveram. Assinado: Francisco Fanhais.
Fiquei suspenso na sequência disso. Portanto, a certa altura, mais concretamente, no princípio de 1971, eu estava simplesmente sem saber o que é que havia de fazer à vida, não é? Não tinha muitas saídas; cheguei a pensar em vender enciclopédias.

7M – Sim, porque mesmo em termos de sobrevivência…
Nada, não tinha nada. E, portanto, andei a ir buscar carros a Espanha. Havia uma companhia que alugava carros; por exemplo, um turista espanhol alugava um carro para ir daqui para Madrid, depois deixava lá o carro, mas era preciso que o carro voltasse. Então, a empresa, pagava uma viagem para eu ir a Madrid buscar o carro que o turista lá tinha deixado. E, por isto, fui a Madrid, a Barcelona…
Depois escrevi a um amigo que morava em Estrasburgo – foi em fevereiro de 1971, tenho a carta – dizendo “Jorge, isto aqui está um bocado complicado, não sei o que hei de fazer à vida. Tenho três proibições (as três que eu já enunciei), queria ver se me arranjas aí qualquer coisa para a bucha”. Bom, esperei pela resposta dele e a resposta nunca veio. Só soube porque é que ele não respondeu quando, depois do 25 de abril, fui ver o meu dossier no arquivo da PIDE e a carta estava lá.
7M – Ele nunca a recebeu.
Nunca a recebeu. Quando eu vi a carta, já depois do 25 de abril… Por acaso, ainda [no início de abril] estive na Torre do Tombo e tornei a ver a carta. Nessa altura, disse “Ah, que engraçado”, pedi uma fotocópia da carta. Por acaso dali a um mês eu ia a França, ia a Estrasburgo, onde ele vivia. Disse “nem é tarde, nem é cedo, é já”.
Peguei na fotocópia, meti-a dentro do envelope, por fora escrevi António Jorge, só não pus selo porque não era para mandar pelo correio. Quando lá cheguei, telefonei-lhe “Vamos almoçar?”, respondeu “Sim, senhor”. Fomos almoçar e, no meio do almoço, puxei da carta e disse “Toma lá.” E ele: “Estás aqui e estás a dar-me uma carta?” Respondi: “Sim, vê lá.” E ele viu a carta que lhe tinha escrito antes do 25 de abril, em 1971. E eu disse-lhe “Olha, desculpa, pensei mal de ti, não era assim que se tratam os amigos, mas a culpa não foi tua nem foi minha, foi alguém que se meteu entre nós, desculpa lá.” E pronto, demos um abraço e a coisa ficou por ali.
7M – É de ir às lágrimas para ambas as partes, não é?
É, é mesmo, é mesmo.
7M – Então, deixou de ser padre por causa dessa suspensão?
Foi, fiquei suspenso. Entretanto, quando eu estava em França, o bispo de Lisboa deixou de ser o cardeal Cerejeira e passou a ser o D. António Ribeiro. Quando ele foi nomeado bispo de Lisboa e, portanto, o futuro cardeal-patriarca, eu mandei-lhe um postal. Era uma fotografia muito bonita, preto e branco, que eu ainda tenho na minha memória: era assim uma bota, e por baixo está uma flor. Vê-se mesmo que vai ser [esmagada]. E há um poema que eu canto, que é um poema de João Apolinário, que diz que é “é preciso avisar a toda a gente, dar notícia, informar, prevenir” – e ainda mais dois versos que eu escrevi no postal: “por cada flor estrangulada há milhões de sementes a florir”. Acrescentei “Respeitosamente, Francisco Fanhais” e mandei ao Dom António Ribeiro.

7M – E recebeu resposta?
Recebi a resposta mais tarde: quando eu fosse a Portugal gostava de falar comigo. E foi isso que aconteceu. Vim a Portugal no verão de 71, talvez, e disse “estou aqui, mostrou desejo de falar comigo e aqui estou.” Respondeu-me: “Estou a chegar à diocese e dei-me conta de que há vários casos complicados, um deles é o seu. Queria saber o que é que se passou.” Eu contei-lhe tudo: “participei no casamento do Felicidade; nas músicas, nas canções, não deixo de denunciar a Guerra Colonial; fui proibido a dar aulas no Barreiro, de continuar a dar aulas; portanto, a situação levou-me a que eu, sabendo da impossibilidade muitas vezes que há de a pessoa transformar as coisas por dentro na Igreja – é como querer destruir uma parede de cimento à cabeçada –, resolvi mudar da ares por um pouco e ver que rumo é que havia de dar à vida e fui para a França. Por isso é que fiquei excomungado, por ter participado e não ter negado que tinha participado no casamento do Padre Felicidade”.
Disse-me “Então, se é assim, eu não tenho problema e levanto-lhe a suspensão.” Ficou a suspensão teoricamente levantada. “E agora se quiser algum trabalho numa paróquia ou algum trabalho paroquial…” E eu disse: “Não, ainda não acabou o tempo que eu me impus a mim próprio para refletir.” Portanto, eu vou de novo para França e não sei por quanto tempo mais, mas vou de novo para França”. E ele disse “Está bem, então” e disse-me “Olhe, continue a mandar-me postais”. Claro que não lhe mandei mais postais. Interpretei isso como uma ironia associada a uma cortesia de despedida, até porque na sequência da conversa percebemos que persistiam muitas divergências em relação a tudo.
7M – Ou seja, não foi um processo abrupto…
Não, o meu afastamento nunca foi “agora, a partir daqui eu desligo, meto os papéis para a redução ao estado laical”, como se dizia antes, não sei se ainda se diz assim. Até porque – isto aprendi com o padre Felicidade – numa altura em que os leigos têm uma posição enorme dentro da Igreja, sobretudo a partir do Concílio do Vaticano II, não vou pedir a redução ao estado laical, porque isso é uma desconsideração para com os leigos.
Fui-me afastando, fui-me esquecendo, não meti papéis, também não me incomodaram mais e o afastamento, digamos assim, foi mútuo. Agora, estou nesta situação, na qual me sinto perfeitamente à vontade, de continuar a ser cristão e não o negar a quem quer que seja. Mesmo que muitas vezes me continuem a chamar Padre; aqui no Alvito, no outro dia, estava na padaria, estavam duas velhotas à espera, cedo, eu cheguei e esperei a minha vez e há uma velhota que diz para a padeira “Ó… – não sei como é que se chama – atende aqui o senhor Padre que ele deve estar com pressa. E, portanto, não me incomoda nada que me continuem a chamar…
7M — E quanto ao entusiasmo vindo do Concílio do Vaticano II?
Estava no Seminário quando foi o Vaticano II.
7M — E chegou algum entusiasmo nesse tempo ou não? Ele traduziu-se nesse empenho da denúncia da Guerra Colonial, por exemplo?
Se calhar pode ter sido paralelo, quer dizer, não sou capaz de dizer, mês a mês, o que é que começou primeiro, mas é uma época em que, com o empurrão do Vaticano II, com a abertura aos leigos, com a abertura à revolução da Igreja, com o João XXIII – o avô do século, como lhe chamou o Manuel Alegre –, tudo isso foi dando asas a uma série de gente. Tudo isso, depois juntamente com a Guerra Colonial e depois, sei lá, tantas coisas juntas que fizeram com que uma pessoa fosse respondendo sempre às solicitações.
À medida que a vida vai avançando, que as solicitações se lhe vão pondo pela frente, a pessoa vai escolhendo sempre de que lado é que quer estar, não é? Foi isso que me levou àquilo que eu sou hoje, onde eu estou hoje, que é continuar a cantar, quando me convidam, a falar do Zeca, da importância que ele teve na minha vida, da amizade profundíssima que me uniu a ele.