
Imagem do filme Bohemian Rhapsody
Uns dias antes da Páscoa revi no Canal Hollywood o magnífico filme Bohemian Rhapsody sobre a vida do célebre cantor Freddie Mercury. Quando esteve no circuito comercial tinha visto este filme duas vezes. Não me canso de o ver. Depois dos Beatles, os Queen (a banda de que Freddie foi vocalista) é o grupo rock que mais aprecio, pela qualidade das letras e músicas e pela magnífica voz e presença eletrizante de Freddie.
No filme, o ator Rami Malek interpreta Freddie Mercury, excepcional interpretação pela qual recebeu um óscar. O filme recebeu mais três óscares (melhor filme, melhor som, melhor mistura de som). Porque terá o realizador atribuído este título ao filme?
A “rapsódia” é “uma composição livre que obedece a características especiais ou clássicas, é uma justaposição, de escassa unidade formal, de melodias populares (as rapsódias húngaras, por exemplo) e de temas conhecidos” (dicionário online). As rapsódias caracterizam-se por terem apenas um movimento, mas podendo integrar fortes variações de tema, intensidade, tonalidade, sem necessidade de seguir uma estrutura pré-definida. Uma característica que quase sempre se faz presente numa rapsódia é que ela contém elementos que são extraídos de óperas, como é o caso da música que deu título ao filme.
Em determinada fase da sua vida, Freddie, influenciado pela ópera, introduz elementos operáticos na sua música. Amante de ópera, chegou a gravar um disco, em 1988, com a soprano espanhola Montserrat Caballé.
A canção Bohemian Rapsody, inspirada pela ópera, desenvolve-se em seis partes: introdução, balada, solo de guitarra, ópera, hard rock e conclusão. Este formato, com mudanças abruptas de estilo, tom e andamento, era pouco comum em músicas de rock.
Mas quem foi Freddie Mercury (1946-1991)? Nascido em Zanzibar (hoje parte da Tanzânia), Farrokh Bulsara, de seu nome inicial, pertencia a uma família parsi zoroastriana originária da Índia que emigrou para Londres por razões políticas. Por pertencer a uma minoria étnica, Freddie foi vítima de bullying na escola, facto que afetou a sua autoestima e o tornou extremamente tímido. Desde cedo revelou capacidades musicais relevantes e estudou piano. Contraditório, como contraditória era a sua bissexualidade, Freddie teve uma relação amorosa com Mary Austin, afastando-se quando intuiu a sua homossexualidade, mas os dois mantiveram uma amizade/amor fiel por toda a vida, com Freddie dedicando a Mary a famosa canção Love of my Life. Vítima da sua própria arte, consumiu drogas (o “pó energético”, como ele afirmava) e praticou exageros como tantos outros artistas. Teve múltiplas relações homossexuais. Tudo isto o levou a contrair sida. Outro sério romance com o cabeleireiro Jim Hutton, com quem Freddie viveu, foi muito importante. Jim esteve a seu lado aquando da sua morte em 1991 aos 45 anos.
Compositor prolífico, Mercury criou a maioria dos grandes sucessos dos Queen, de que bem nos lembramos, como We Are the Champions, Love of my Life, Killer Queen, Bohemian Rhapsody, Somebody to Love ou Don’t Stop Me Now.

Porque é que este filme me suscita uma emoção pascal?
Há dias estive na Fundação Gulbenkian a escutar (melhor, contemplar) a Paixão Segundo S. Mateus, de Bach. Sublime! O cenário envidraçado permitia ver as árvores do parque de um verde tenro e, emergindo, como um tufo, a copa cor-de-rosa de uma árvore anunciando a Ressurreição, apesar da tristeza que a narrativa da Paixão nos evoca. Um Cristo que pede ao Pai que afaste de si aquele cálice.
Ora Bohemian Rapsody é um filme sobre a fragilidade, a imensa fragilidade de um homem genial: ousado, “diferente”, irreverente, criativo e determinado, convicto, livre e com uma visão daquilo que pretendia fazer com a sua vida. A ameaça de morte prematura com sida não abalou a sua convicção de viver dia após dia como se esse fosse o último. Não quis divulgar a sua doença porque queria manter-se um performer até ao fim: “Eu tenho de dar às pessoas o que elas pedem: um toque dos céus!”
A arte – clássica, moderna – é para mim esse “toque nos céus”. Seja a música de Bach ou dos Queen, seja a Última Ceia de Leonardo da Vinci ou o céu da Igreja de Santa Isabel (Lisboa), de Michel Biberstein, seja a poesia que leio como quem lê a Bíblia – todos os dias! Toda a arte nos ajuda a tocar o divino à nossa volta. Segundo Oscar Wilde, “O lugar de Cristo é entre os poetas”.
Criador de canções, Freddie afirmava que “a verdadeira poesia se destina ao ouvinte”, por isso escrevia canções como se quisesse cumprir uma missão de que “fora incumbido”. A sua amiga Mary é uma figura “redentora”, permanente, sólida, atenta… uma cuidadora. A ela se deve a soberba participação dos Queen no Live Aid, em 1985. O último companheiro de Freddie, Jim Hutton, outra figura redentora, diz-lhe: “Vem para mim quando decidires gostar de ti próprio.” E é na solidão que este processo se realiza. No caso de Freddie, era uma solidão inundada por muito ruído e alienação. Uma fama ilusória e só, quase decadente.
Revisito a palavra “rapsódia” – que não tem uma estrutura pré-definida – para sublinhar o caráter espiritual deste filme: de relações destrutivas a relações construtivas; uma fabulosa energia tecida de uma significativa cooperação com o grupo dos Queen; a capacidade de galvanizar um público que frequentemente irrompe em lágrimas emocionadas. A reconciliação com o pai que não o entendia na sua missão de artista. Sim, experimentamos uma energia pascal! We Are the Champions respira Páscoa.
Acabei de rever este filme em lágrimas. Sei que tenho lágrima fácil e agradeço a alegria que emanou destas lágrimas. Lágrimas redentoras. Bohemian Rhapsody é um filme sobre a Ressurreição após as muitas mortes vividas por Freddie Mercury. E, face à morte, somos todos iguais.
Deixo aqui alguns versos traduzidos da Bohemian Rapsody:
É esta a vida real?
É isto apenas fantasia?
Apanhado em terra firme,
Sem fugir da realidade
Abre os olhos,
Olha para o céu e vê,
Sou apenas um menino pobre, não preciso de simpatia,
Porque eu sou fácil de vir, fácil de ir,
Pouco alto, pouco baixo
De que forma o vento sopra, não importa realmente para mim (…)
Mãee
Não queria fazer-te chorar,
Se eu não voltar amanhã a esta hora,
Continua, continua como se nada realmente importasse.
Tarde demais, chegou a minha hora.
Tenho arrepios pela coluna, dói-me o corpo todo.
O tempo
Adeus a todos, tenho de ir,
Tenho de vos deixar todos para trás e enfrentar a verdade.
Mãee, ooh!
Eu não quero morrer (…)
De qualquer forma, o vento sopra…
Teresa Vasconcelos é professora do Ensino Superior e participante no Movimento do Graal; contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com.