
Mais uma polémica na Nicarágua com a Igreja Católica faz aumentar o clima de repressão do país. Foto © Derek Brumby
“A UCA é um centro de terrorismo”. Foi esta a acusação que o regime ditatorial da Nicarágua invocou para calar e neutralizar aquela que é considerada uma das mais prestigiadas universidades privadas da América Central, a Universidade Centro-Americana da Nicarágua (UCA),dirigida pela Companhia de Jesus, com sede em Manágua.
A notificação judicial chegou no dia da festa da Assunção, ao fim da tarde, dia que não é feriado na Nicarágua. Uma juíza do 10º Tribunal Penal Distrital de Manágua, ordenava a “apreensão de bens imóveis, mobiliário, dinheiro em moeda nacional ou estrangeira das contas bancárias imobilizadas, produtos financeiros em moeda nacional ou estrangeira propriedade da UCA”.
O início das aulas para o novo ano letivo estava previsto para 21 de agosto, segunda-feira, pelo que havia o habitual movimento de alunos para se inscreverem e matricularem. Mal as autoridades académicas confirmaram a notificação recebida, gerou-se o receio de que a instituição viesse a ser ocupada pelas forças policiais, levando à evacuação do pessoal docente, administrativo e dos estudantes. Nas redes sociais, tornou-se viral a imagem de um grande crucifixo que estava a ser retirado da capela do campus universitário, bem como outros objetos de especial valor simbólico.
El periódico nicaragüense @laprensa acaba de anunciar que el personal de la UCA está poniendo a salvo las imágenes de la capilla de la universidad para evitar una posible profanación tras la incautación del edificio a manos de la dictadura. pic.twitter.com/8uhyBsfxfM
— Nacho Narváez, SJ (@NarvaezSJ) August 16, 2023
Apesar de o site da instituição continuar a funcionar como se nada de anormal estivesse a decorrer, a UCA emitiu um comunicado dando conta da suspensão das atividades, “até que estejam reunidas as condições” para a sua retoma. Com o futuro também em suspenso ficaram 546 professores e mais de 5000 estudantes.
A perseguição do regime de Daniel Ortega e a esposa Rosario Murillo remonta a 2018, quando a Universidade se converteu em refúgio para muitos jovens perseguidos pela polícia por se terem envolvido ativamente nas lutas populares contra a política social do governo.
Segundo o jornal El País, nos últimos tempos, as autoridades “encurralaram” a instituição, congelando os seus bens imóveis e as suas contas bancárias e revogando a acreditação do seu Centro de Mediação Legal, um serviço gratuito para os cidadãos.
A Província Centro-Americana da Companhia de Jesus, com sede em El Salvador, considerou, entretanto, em comunicado, as “graves acusações” de que que a UCA funcionava “como um centro de terrorismo, organizando grupos criminosos”, “totalmente falsas e infundadas”.
O comunicado chama a atenção para “o prestigioso trabalho” de ensino e investigação desenvolvido pela Universidade durante os seus 63 anos de existência, o qual “foi reconhecido nacional e internacionalmente”, tendo sido realizado “de acordo com a tradição educativa da Companhia de Jesus e as orientações da Igreja Católica”.
Do seu ponto de vista, “esta nova agressão governamental contra a Universidade não é um facto isolado; faz parte de uma série de ataques injustificados contra a população nicaraguense e outras instituições educativas e sociais da sociedade civil, que estão a gerar um clima de violência e insegurança, agravando a crise sociopolítica no país”.
A posição oficial da Companhia assume que, a partir de abril de 2018, “como resultado da sua posição em defesa da vida de pessoas que estavam a ser reprimidas por forças estatais e para-policiais, a UCA tem sido objeto de constante perseguição e assédio por parte das instituições governamentais nicaraguenses, expressa em mecanismos como a não prorrogação das certificações necessárias para o seu funcionamento”. Como exemplo refere a exclusão de membro do Conselho Nacional de Universidades (CNU), de que foi vítima, que lhe retirou a possibilidade de beneficiar “dos 6 por cento afetados ao ensino superior”.
Por fim, a Companhia de Jesus solicita ao Governo que cessem os efeitos das medidas tomadas contra a UCA, agradece o grande número de manifestações de solidariedade nacional e internacional, assume o seu compromisso com o povo da Nicarágua e com o Evangelho e reconhece que “o confisco de facto da UCA é o preço a pagar pela busca de uma sociedade mais justa, para proteger a vida, a verdade e a liberdade do povo nicaraguense, de acordo com o seu lema: A verdade vos libertará (João 8:32)”.
O Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas, através do seu escritório para a América Central e as Caraíbas, considerou na rede social X (ex-Twitter) que o impacto das medidas contra a UCA, com a suspensão das aulas, “afeta seriamente o direito à educação, que é essencial para o cumprimento de outros direitos humanos”.
🔵#Nicaragua – @OACNUDH condena la confiscación de todos los bienes de la Universidad Centroamericana #UCANicaragua
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— OACNUDH (@OACNUDH) August 16, 2023
Aquela agência apelou à Nicarágua para que respeite as suas obrigações ao abrigo do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, que protege o direito à educação.
Por sua vez, o bispo nicaraguense exilado Silvio Jose Baez, escreveu que “a confiscação injusta e ilegal da UCA pela ditadura sandinista é ultrajante” e demonstra “desprezo pela liberdade intelectual, pela educação de qualidade e pelo pensamento crítico. Todos os dias, afundam-se mais na sua irracionalidade, na sua maldade e no seu medo.”
A historiadora Dora Maria Tellez, também ela exilada denunciou igualmente a medida, considerando-a como um ato de “ditadura”. “A universidade com a maior qualidade académica do país foi liquidada”, disse Tellez, uma ex-aluna, citada pelo site da cadeia televisiva Al Jazeera.