
O Patriarca Cirilo acusa as autoridades de Kyiv de violar a liberdade religiosa. Foto © Ivars Kupcis/WCC-CMI.
A Igreja Ortodoxa Russa, através do Patriarca Cirilo, de Moscovo, desencadeou nos últimos dias uma movimentação internacional, em articulação com o Kremlin, no sentido de levar o Governo ucraniano a fazer marcha atrás na decisão de obrigar os monges que ocupam o complexo do mosteiro de Kiyv-Pechersk Lavra a abandonar o local até ao dia 29 deste mês.
O ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, interpelou esta terça-feira, 14, o secretário-geral da ONU e o chefe da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), denunciando aquilo que considera uma tentativa de destruição da Igreja Ortodoxa Ucraniana, que era até recentemente sufragânea do Patriarcado de Moscovo (mas que declarou, entretanto, a sua autonomia, criticando Putin pela invasão e pela guerra de agressão).
Cirilo, que tem sido um dos mais convictos apoiantes de Putin nesta guerra contra a Ucrânia, apelou aos líderes das igrejas cristãs, como a Católica, a Anglicana e a Copta, e a organizações internacionais não governamentais, que “façam todos os esforços para impedir o encerramento forçado do mosteiro, o que levará a uma violação dos direitos de milhões de crentes ucranianos à liberdade religiosa”, garantida, acentua ele, pela Constituição da Ucrânia, bem como por documentos como a Carta da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou Crença, entre outros textos de referência.
Estão em causa igrejas e mosteiros em número que não foi tornado público, mas sobretudo alguns grandes edifícios religiosos onde funcionam há séculos mosteiros e espaços de culto, como é o caso do mosteiro de Kyiv-Pechersk Lavra, um complexo de perto de centena e meia de edifícios imponentes, numa colina que dá para o rio Dnipro. Fundado em 1051, é tido como o mosteiro mais antigo da ortodoxia, também conhecido pelas suas grutas; e, tal como a catedral de Santa Sofia, na capital Kyiv, integra a lista do património mundial da Unesco.
O Estado ucraniano detém o controlo destes complexos, disponibilizando-os para usufruto às confissões religiosas, mediante contrato. No caso de Lavra, e dos mosteiros e catedral de Chernihiv, o Governo ucraniano considera que estes conventos têm servido para alojar apoiantes de Moscovo, sob a capa da religião.
Recorde-se que a Ucrânia tem, presentemente, três igrejas que se referenciam à ortodoxia, sendo a mais antiga e numerosa a que esteve historicamente ligada ao Patriarcado de Moscovo e uma de índole nacionalista, bastante mais recente, que foi reconhecida como autocéfala (independente) pelo Patriarca Bartolomeu, de Constantinopla (Istambul).

Putin e o Patriarca Cirilo, no Kremlin, em novembro de 2021. Kremlin.ru, CC BY 4.0, via Wikimedia Commons.
A guerra veio complicar um xadrez religioso que já era de si complexo, dando força à igreja autocéfala. Apesar de movimentações da denominação próxima de Cirilo no sentido de apresentar credenciais de autonomia e de defesa da causa ucraniana, os laços históricos e a vertigem do processo desencadeado pelo conflito não tem facilitado as coisas.
O poder em Kyiv não renovou os contratos que caducaram e determinou que os monges deveriam abandonar as instalações que ocupam.
O Presidente Zelenski dizia, na última segunda-feira, 13, que não permitirá que a Rússia “manipule a religiosidade do povo, enquanto destrói e saqueia santuários ucranianos“.
Num clima em que a religião e as divisões religiosas se tornaram arma de guerra, há quem, na base, esteja a procurar explorar a via do diálogo entre as igrejas. Sintomaticamente, esse diálogo ocorre entre clérigos e alguns leigos, mas não parece tocar nem os cargos mais elevados das hierarquias eclesiásticas (bispos, primazes…) nem o povo crente comum. Nesses dois extremos se encontram, precisamente, as posições mais polarizadas e menos disponíveis para o diálogo.
Um artigo publicado na última semana no site Public Orthodoxy dá conta, com um grau de pormenor assinalável, não apenas dos esforços e dificuldades do diálogo entre as várias correntes, mas também dos medos (de absorção) e fantasmas (sobre o ‘outro’) que cada Igreja tem sobre a outra – incluindo os matizes dentro de cada uma das igrejas.
Não se conhecendo outras reações aos apelos que chegam da Rússia, o Papa Francisco entendeu responder ao Patriarca Cirilo, na audiência geral desta quarta-feira, na Praça de S. Pedro: “Penso nos monges ortodoxos da Lavra de Kyiv. Peço às partes em conflito que respeitem os locais religiosos. Os frades e as pessoas consagradas à oração, seja qual for a denominação a que pertençam, são um apoio para o povo de Deus.”