Uma Igreja ousada “na concretização de uma agenda transformadora e na adoção de um novo modelo de funcionamento interno”, que dê atenção aos cinco “P” da Agenda 2030 da ONU (planeta, pessoas, prosperidade, parcerias e paz) e seja uma Igreja Cidadã na inclusão das mulheres, no repensar do internato em Seminários, na abertura da formação a homens e mulheres. Estas são várias das propostas de um grupo de crentes e não-crentes, em resposta à maior auscultação alguma vez feita à escala planetária, lançada pelo Papa Francisco, para preparar a assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023. Esse coro imenso de vozes não pode ser silenciado, reduzido, esquecido, maltratado. O Espírito sopra onde quer e os contributos dos grupos que se formaram para ouvir o que o Espírito lhes quis dizer são o fruto maduro da sinodalidade. O 7MARGENS publica alguns desses contributos, estando aberto a considerar a publicação de outros que nos sejam enviados. Os nomes dos membros deste grupo informal “Caminhar em Conjunto” estão indicados no final do texto.
Enquadramento: juntar diferentes para ir mais além

“Viver um processo eclesial participativo e inclusivo, que não deixasse de ouvir os/as que “estão fora da Igreja”. Foto © Conferência Episcopal Espanhola.
A reflexão que se segue foi feita em conjunto por crentes e não-crentes, na sequência do convite endereçado por alguns católicos e católicas a pessoas que se consideram agnósticas ou não-crentes para fazerem, com eles e elas, a primeira etapa da caminhada sinodal. Estamos, assim, em sintonia com a orientação n.º 29 do Capítulo IV do Documento Preparatório do Sínodo: auscultar «como se realiza hoje, a diferentes níveis (do local ao universal), aquele caminhar juntos que permite à Igreja anunciar o Evangelho, em conformidade com a missão que lhe foi confiada». Julgamos ir ao encontro da recomendação de se «viver um processo eclesial participativo e inclusivo, que ofereça a cada um – de maneira particular àqueles que, por vários motivos, se encontram à margem – a oportunidade de se expressar e de ser ouvido». Algo que foi vincado em sucessivos apelos do Papa Francisco: que no processo sinodal não se deixasse de ouvir os/as que “estão fora da Igreja”.
Este grupo de reflexão, criado para responder a este desafio, reuniu regularmente durante três meses. O presente documento, fruto desses encontros, procura, na primeira parte, expor as motivações das e dos intervenientes e, na segunda, dar a conhecer as suas principais preocupações e apresentar algumas propostas para que a Igreja Católica, como instituição de âmbito mundial com um património ético, social, histórico e cultural relevante, possa dar um contributo decisivo para a transformação do Mundo assente numa civilização mais humanista e universalista.
Parte 1. Caminhar em Conjunto: um desafio incontornável
O que une e move os membros deste grupo?
Une-nos e move-nos o empenho de contribuir para uma humanidade melhor, a convicção de que a humanização das sociedades exige uma maior aproximação entre cidadãs/cidadãos, organizações e agendas que partilham as mesmas causas. Move-nos, ainda, a crença na força transformadora das ideias e no potencial de mudança aberto pela possibilidade de participação cidadã na construção de uma Igreja que escolha o caminho da sinodalidade no espírito da encíclica Laudato si’ sobre o Cuidado da Casa Comum. Move-nos, finalmente, a visão de uma Igreja aberta à diversidade e inclusiva ser uma instituição relevante no percurso que julgamos necessário de humanização das sociedades contemporâneas.
Onde queremos chegar?
Ambicionamos produzir um contributo analítico e propositivo a partir de uma interpretação exigente dos três verbos assinalados pelo Papa Francisco como condutores de reflexão: encontrar, mas também “estar, ser e devir com”; escutar, mas também criar e manter espaços permanentes de diálogo, participação e interação; discernir, mas também transformar a Igreja – “laboratório teológico” numa Igreja universal de proximidade, nomeadamente com os excluídos, os considerados “diferentes”, os que estão nas margens, os que raramente são ouvidos, e também os que, considerando-se “estar fora”, pretendem, com um olhar atento, “desafiar” os de dentro.
Que problemas e desafios das sociedades contemporâneas estão em causa?
Falamos de todos os problemas e desafios relacionados com obstáculos e condições de humanização das sociedades atuais. Isto é, de problemas sociais, velhos e novos, que vão da persistência da condição de subalternidade das mulheres nos processos de tomada de decisão e de todas as formas estruturais de iniquidade, pobreza e exclusão, aos processos de transição justa nos domínios digital, energético e ecológico e aos desafios da relação entre a ética e o progresso científico e tecnológico.
De que Igreja precisamos para suscitar as necessárias mudanças transformadoras?
Sabemos que uma Igreja com um discurso e uma prática assentes nas ideias de pecado, culpa, castigo e expiação, uma Igreja permeada por demasiados silêncios (pedofilia, efeitos indesejados do celibato e do voto de castidade), quando não conivências (interesses financeiros, por exemplo), sem uma cultura de prestação de contas, sub-repticiamente hipócrita na forma como promove exclusões e desigualdades (mulheres, pessoas divorciadas, homossexualidade), fatalista quanto ao destino coletivo de grupos vulneráveis, marginalizados e em risco de exclusão social e distante das suas vivências e do seu sofrimento, triste, fechada e pouco reflexiva e crítica, não poderá suscitar mudanças transformadoras capazes de dar resposta ao tipo de problemas e de desafios anteriormente identificados.
Sabemos também que, por oposição, uma Igreja mais aberta, justa, alegre e esperançosa, cuidando das pessoas e trabalhando com elas de forma desinteressada, com tempo, responsabilidade ética e em parceria não sobranceira, aberta e recetiva à liberdade e à autodeterminação pessoal, terá mais apoio se quiser ser ousada na concretização de uma agenda transformadora e na adoção de um novo modelo de funcionamento interno.
Parte 2: Caminhar em Conjunto: contributos para uma jornada inadiável
Selecionámos três temáticas que, pela sua natureza, correspondem a âncoras decisivas para um caminhar em conjunto tão alargado quanto a urgência e a complexidade das questões anteriormente identificadas o exigem. As temáticas escolhidas foram Humanidade, Universalidade e Igreja Cidadã, sendo a última uma condição indispensável para o cumprimento das duas primeiras.
. Humanidade
Os desafios

A posição única do ser humano no mundo está a ser crescentemente questionada através de duas vias principais. Por um lado, a manipulação genética do ser Humano, que desvirtua a sua condição quando a coloca ao serviço de uma racionalidade em que afloram marcas de desumanização e instrumentalização; por outro lado, a subordinação ao espaço robotizado, em que uma parte crescente da interação humana ocorre através da mediação de dispositivos logotécnicos, que podem conduzir à desvalorização das interações face a face e da riqueza em termos sociais que as mesmas representam. Essas duas vias criam a ilusão de desenvolvimento humano, de eficácia da comunicação interpessoal, e promovem a improbabilidade de comunicação e a solidão. A Inteligência Artificial, por sua vez, sugere a noção de “autonomia das máquinas”, ou seja, de que as máquinas ou os algoritmos podem tomar decisões de modo informado e sem controlo direto humano. A importância e a inevitabilidade das tecnologias e do mundo digital não devem, no entanto, servir para naturalizar o seu uso para o controlo do ser humano, submetendo-o a novas formas de servidão.
Neste sentido, defendemos os valores do humano, juntando crentes e não-crentes, ocidentais e orientais, do hemisfério norte e do hemisfério sul, que afirmem o Humanismo como o valor único da vida humana e a sua missão de defesa da vida. Neste percurso é fundamental continuar a aperfeiçoar a noção de direitos humanos unos e indivisíveis e pugnar por uma condição humana exigente na promoção da dignidade individual e no reconhecimento das identidades coletivas, seguindo o caminho aberto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Mas sendo o ser humano o único que pode assumir essa missão, ele é também o único que, por sua decisão, pode destruir a vida na Terra. Talvez, por isso, a expressão ´um mundo melhor` ajude a transmitir uma visão que impeça a dicotomia entre problemas sociais, entregues à política, e problemas da ´natureza`, entregues à ciência e à tecnologia. E talvez a expressão ´um mundo melhor` seja emblemática de uma outra globalização, em que universalizamos a condição humana em fraternidade universal, cuidamos simultaneamente do território em que vivemos e do planeta a que pertencemos, encarando também como desafio da justiça social garantir o uso equitativo dos recursos e das energias.
Com efeito, sem escutar a vozes do clima, dos recursos e energias, dos seres e agentes naturais, não conseguimos fazer passar a voz das comunidades humanas. Importa atender a todas estas mensagens, com a plena convicção de que o seu melhor intérprete são os seres humanos, preferencialmente, os sem voz nem lugar, porque pobres, esquecidos, destituídos de todo e qualquer poder, vulneráveis, descartados, excluídos.
As respostas de uma Igreja que sai de si própria
Para atender a estes problemas, a Igreja necessita de uma outra abertura, saindo de si para se encontrar. “A Igreja que sai de si própria” assenta no reconhecimento de que a construção da Casa Comum é uma causa humana universal de que a Igreja faz parte com determinação e convicção com o seu compromisso evangélico, ousando sair da periferia onde se encontra e colocando em prática as orientações da encíclica Laudato si’.
A visão de uma Igreja que sai de si própria e a perspetiva do Humanismo devem responder aos novos desafios e ameaças exercendo a sua ação em múltiplas frentes, convergentes com os vários “P” propostos na Agenda 2030 das Nações Unidas sobre os objetivos de desenvolvimento sustentável.
No que se refere ao Planeta, deverá ser assegurada uma gestão adequada da sustentabilidade da Terra no respeito pelas gerações futuras, o que implica a defesa, promoção e desenvolvimento do direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável, o reconhecimento, restauro e salvaguarda dos bens comuns globais, tanto terrestres como marinhos, a construção de uma economia regenerativa e a definição de formas de governação e soluções institucionais inclusivas, participadas e adaptativas.
No que diz respeito às Pessoas, é imperioso defender uma cultura humanista construtora de um progressismo social e cultural que combata todas as formas de desigualdade e exclusão, erradique condições de vida infra-humanas, promova relações interpessoais e contextos de segurança e florescimento humano, crie novos espaços de encontro e de diálogo entre seres humanos, salvaguardando a privacidade, promovendo a fraternidade e o direito a não depender de decisões robotizadas nos aspetos essenciais da vida, e mantendo uma vigilância permanente sobre a manipulação genética para evitar e combater os seus usos ilegítimos.
Em relação à Prosperidade, é essencial defender trabalho e salários dignos e combater as assimetrias indignas de distribuição do rendimento. Defender, em suma, uma economia de bem comum que promova o pleno emprego, garanta a todos uma participação equitativa nos recursos materiais e simbólicos, dê particular atenção aos jovens e às suas condições de vida e de trabalho, construa mecanismos institucionais para a conciliação entre a vida familiar e profissional, e assegure a escuta das vozes do mundo do trabalho.
Quanto às Parcerias, é fundamental promover uma democracia que seja verdadeiramente para todos, com um estado social participado, inclusivo e democrático, criando condições para um melhor funcionamento das instituições.
Finalmente, a Paz exige a sua busca permanente, a eficácia da sua regulação global e a eliminação das armas de destruição maciça.
. Universalidade
Os desafios
A globalização é uma condição estrutural do nosso tempo, uma realidade profundamente heterogénea, contraditória, em que coabitam, em escala universal, dinâmicas de congregação e práticas de exclusão, processos de reconhecimento e lógicas de hierarquização. O ideal da unidade do género humano não é servido nem pelo globalismo, que amarra os povos a um destino de desigualdades traçadas pelos mais fortes, nem pelos localismos, que os querem encerrar num saudosismo de “os fazer outra vez grandes”, fomentando os nacionalismos xenófobos e autoritários. O testemunho transmitido por uma Igreja que saia do âmbito eclesiástico é o da relação que ajuda o que está longe a ser mais próximo, o que está ferido a ficar são, e o que está injustiçado a vivenciar a justiça.
Se alguma coisa é global, é a fragilidade das âncoras da globalização, a aceleração do tempo e da tecnologia e a multiplicação dos discursos chauvinistas, antidemocráticos e populistas. Os homens e as mulheres deste tempo experienciam, de forma diversa, a condição de sem-abrigo na Babel vertiginosa da vida quotidiana, a possibilidade de um Pentecostes em que nenhuma casta impõe a sua língua e ritual, enquanto muitos são capazes de escutar e seguir o espírito nos modos de estar culturais diferenciados que aprenderam e usam.
A resposta à experiência funda de perda é, por regra, a do isolamento. Isolamento individual, traduzido em indiferença, egoísmo consumista ou adversarialismo competitivo. Isolamento coletivo, traduzido no refúgio identitário ou no resgate de velhos catálogos de certezas fechados ao desafio da vida e às práticas de solidariedade.
As respostas de uma Igreja acolhedora de todos/as

Neste contexto, a Igreja enfrenta o desafio de ser um sinal de unidade fraterna e de acolhimento universal. O que os homens e as mulheres deste tempo pedem à Igreja é que proceda ao avesso das culturas do fechamento. Face à postura defensiva das ortodoxias, pede-se que a Igreja se contraponha como testemunho de acolhimento confiante da pluralidade e da diferença.
O mundo precisa da “Igreja do limiar”, como lhe chamou Yves Congar, em que a fronteira entre o dentro e o fora se esbate para ser um só: o espaço da salvação, o das vidas transformadas pelo apelo da fraternidade. O mundo precisa da “Igreja em saída”, como lhe chama Francisco, uma Igreja que recusa a divisão entre os crentes do interior e os descrentes do exterior. Nas palavras de Bruno Latour, “não foi o mundo que perdeu a fé, foi a fé que perdeu o mundo”. E a noção de que assim é mostra que o/a católico/a só é universal se não se deixar prender na esfera homogeneizadora do domínio e do poder.
Essa Igreja do limiar, em saída, é uma prática com força de testemunho. Só uma Igreja acolhedora desafia ao acolhimento. Só uma Igreja de todos/as e para todos/as – mulheres e homens sem discriminação, configurações familiares diversas sem outro critério de presença que não seja o da gratuitidade do amor – desafia à inclusão. Só uma Igreja que estima e estimula o diálogo no seu interior desafia ao diálogo inter-religioso e ao diálogo entre as comunidades de fé e agnósticos e/ou ateus unidos a ela na causa da humanização da sociedade. O mundo precisa de sinal e de testemunho coerentes e não de códigos de preceitos alheios ao fluir da vida. O mundo precisa também de sinais de abertura, diálogo, respeito pela diversidade e valorização da liberdade na construção da maior fraternidade humana que nos une.
Tanto como a Igreja precisa de se abrir ao mundo para cumprir melhor a sua missão, o mundo precisa dessa Igreja aberta para se cumprir melhor como universo de fraternidade humana.
Esse testemunho de acolhimento universal tem um critério: o das vidas transformadas à luz das bem-aventuranças. E tem uma mediação: a opção preferencial pelos mais pobres na procura de justiça social, opção que não pode ser dissociada do cuidado dos bens universais da Terra. É nestas duas componentes que poderá assentar a reconfiguração do modo de ser Igreja no nosso tempo.
As estruturas paroquiais, muitas vezes mais administrativas que testemunhais, devem conviver com pequenas comunidades eclesiais que exprimam o esforço e o empenho pastoral de criar vínculos entre crentes e não-crentes, permitindo a todos partilhar tarefas concretas de democracia na decisão eclesial, de cuidados ecológicos do que está próximo tanto em áreas urbanas como rurais, de assistência humanitária dentro e fora do seu território e, por fim, de um novo discurso humanista em que não há donos da comunidade, mas irmãos fraternos na sua edificação.
Estes desafios do limiar, da saída, do acolhimento universal, da comunidade testemunhal, exigem que os e as crentes vivam autenticamente a sua fé em cooperação com os e as não-crentes e aprendam constantemente com a complexidade da realidade e a riqueza e diversidade do ser humano no mundo.
. Igreja Cidadã
A condição das mulheres na Igreja
Os desafios

Uma Igreja de uma ética do cuidar, preocupada, interessada e proativa, não pode desenvolver a sua ação continuando a excluir as mulheres dos processos de tomada de decisão.
Se bem que a investigação levada a cabo nas últimas décadas sobre as origens do cristianismo e a dinâmica da Igreja Primitiva tenha mostrado a relevância do papel das mulheres, a verdade é que, ao longo dos séculos, a Igreja não só as fez desaparecer das instâncias de decisão e de poder, como contribuiu para a instituição de uma representação das mulheres e do feminino totalmente discriminatória. Embora o Papa Francisco tenha procurado atenuar esta discriminação com uma nomeação sistemática de mulheres para cargos importantes, dentro e fora da Cúria, a verdade é que a questão é estrutural e necessita de uma intervenção a esse nível.
Por um lado, tendo tomado ao pé da letra o dito de São Paulo, a Igreja silenciou completamente a voz das mulheres. Esta situação é posta em evidência com a modificação do Cânone 230, § 1º, do Código do Direito Canónico pelo Papa Francisco, admitindo-se, explicitamente, que as mulheres possam ser leitoras e acólitas, na medida em que tal decisão chama de forma expressa a atenção para o facto de, até aí, a Igreja não ter reconhecido às mulheres esse direito.
Por outro, a Igreja é responsável por uma representação das mulheres que as estigmatizou e, ainda hoje, as marca negativamente, proclamando a ligação das mulheres e do feminino ao mal, ao pecado e, em última análise, considerando-as todas culpadas, em Eva, da expulsão do paraíso. Só em Mulieris Dignitatem, de João Paulo II, se reconhece como falsa a perspetiva de imputar às mulheres a culpa pelo pecado original.
Finalmente, apesar de pelo menos a partir da segunda metade do século XX haver um amplo trabalho de mulheres teólogas, religiosas ou leigas nos mais diversos continentes, esse trabalho continua a ser ignorado, total ou parcialmente, na discursividade da Cúria, nos programas curriculares e de formação de clérigos e nas referências bibliográficas em geral.
Em suma, na Igreja as mulheres têm sido remetidas a um papel de servir em silêncio e em subalternidade uma ordem masculina omnipresente.
Este tratamento das mulheres pela Igreja está profundamente enraizado, teórica e doutrinalmente, numa conceção antropológica tradicional e assimétrica que concebe o humano a partir do masculino e marca as mulheres com especificidades sem equivalente para os homens, que as aprisionam a uma espécie de destino e que a carta apostólica Mulieris Dignitatem consubstancia, apesar dos avanços que representa, retirando-lhes a liberdade, enquanto indivíduos, de poderem definir um projeto de vida.
Embora a situação das mulheres na Igreja tenha sido sempre marcada pela injustiça face às dinâmicas sociais e ao papel que as mulheres nelas desempenham, tal situação é não só anacrónica como descredibilizadora do testemunho da Igreja no mundo, desrespeitando mais de metade dos seres humanos, pelo que se torna imperiosa uma inversão desta situação.
As respostas de uma Igreja Cidadã
Enfrentar a situação – A primeira coisa que a Igreja como Instituição deve às mulheres é o reconhecimento da profunda injustiça com que as tratou ao longo dos tempos. Tal ato de reconhecimento vem sendo exigido por muitas vozes não ouvidas dentro da Igreja.
Abrir-se ao diálogo – A Igreja deve ter a humildade de reconhecer o seu desconhecimento profundo das diferentes elaborações feministas que têm vindo a ser feitas no seio da própria comunidade cristã e realizar com elas um diálogo aberto e despido de preconceitos.
Ressignificar-se – No que diz respeito à situação das mulheres, a Igreja tem de levar a cabo uma profunda reelaboração teórica, doutrinal e organizativa, o que implica:
- Elaborar uma nova antropologia que vise a humanidade no seu conjunto e que permita reafirmar e confirmar a matriz original do protagonismo das mulheres na Igreja, seja o de Maria, o de Marta ou o de Madalena, dando às mulheres, em igualdade com os homens, a capacidade de participação integral na missão da Igreja.
- Remodelar a forma e o conteúdo de comunicação, obrigando-se ao uso de uma linguagem inclusiva, clara e simples.
- Reformular os rituais e os textos, para que manifestem e difundam, em igualdade, o protagonismo das mulheres e dos homens na Igreja.
- Incorporar nas estruturas do poder eclesial mulheres e homens em igualdade de estatutos e de posições.
Organizar um Sínodo específico sobre o papel da mulher numa Igreja Inclusiva, em cuja preparação e realização as mulheres tenham um papel relevante, onde, por um lado, se faça o diagnóstico da situação e, por outro, se desenvolva uma reflexão antropológica e sociológica que deixe de se preocupar com a especificidade das mulheres e se centre, claramente, na afirmação da igualdade humana de homens e de mulheres, superando as visões de complementaridade e de antropocentrismo masculino a partir das quais o mundo da Igreja e o mundo dos leigos têm sido perspetivados.
Viver as diferenças em igualdade de estatutos: reconhecimento e dignidade
Os desafios
Se as mulheres fazem secularmente parte da Igreja, mas em condição de subalternidade, os seres humanos que não partilham da orientação sexual hegemónica (a heterossexualidade) têm sido tradicionalmente excluídos dela. A desvalorização e o desprezo cultural da homossexualidade e de outra formas de orientação sexual e de construção de género têm um forte enraizamento nos valores culturais das sociedades e na cultura da Igreja, com consequências negativas na vida de milhares de seres humanos, que vivem um sofrimento quotidiano escondido e destruidor. É fundamental romper com a dicotomia hierarquizante heterossexualidade-homossexualidade, desestabilizando todas as identidades sexuais entendidas como fixas. Trata-se, assim, de defender um campo sexual e de papéis de género de múltiplas diferenças, fluidas e mutáveis.
As respostas de uma Igreja Cidadã
A superação da homofobia, do heterossexismo e do binarismo de género requerem uma mudança profunda dos valores culturais, reconstruindo mapas mentais e estruturas sociais que permitam viver uma igualdade de estatutos, com paridade de reconhecimento na esfera pública.
Neste sentido, importa que a Igreja aceite, num plano de igualdade, a multiplicidade de orientações sexuais e de géneros que fazem parte da humanidade, tanto ao nível discursivo, como nos diferentes corpos que a constituem. O mesmo se deverá dizer em relação a todas as diferenças racializadas por razões de ordem biológica e étnico-cultural que, sendo socialmente percebidas a partir de uma norma cultural, têm sido também secularmente subalternizadas.
Reconhecimento interno da violação de Direitos Humanos fundamentais
O desafio
A Igreja necessita de olhar profundamente para o seu interior, para o sofrimento silencioso e silenciado das crianças, e dos adultos que foram crianças, objeto de abusos sexuais, reconhecendo a sua culpa negligente e conivente na construção daquele sofrimento.
As respostas de uma Igreja Cidadã
Uma Igreja Cidadã previne esses abusos, nomeadamente através da alteração de modos e conteúdos da formação eclesiástica, repensando o internato em Seminários, abrindo a formação a homens e mulheres. E repensa, também, a obrigatoriedade do celibato.
É esta Igreja em saída, democrática, construída com a voz de todas e de todos, que servirá os ideais de um Mundo Melhor, com mais e melhor construção de Humanidade.
Epílogo: “Caminhar em conjunto – Trazer as Margens para o Centro”, uma experiência transformadora da instituição e das pessoas
A reflexão que nos uniu na oferta deste contributo à Igreja Católica foi conduzida pela nossa partilha do valor fundamental da humanização da sociedade. Nas nossas diversas experiências individuais partilhámos a inquietação pela imperfeição das instituições e da sociedade em que vivemos. A caminhada sinodal deu-nos uma oportunidade de cruzarmos esse espanto com a nossa vontade comum de contribuir para um mundo melhor.
Dentro e fora da Igreja católica há que reforçar o respeito pela liberdade e pela diversidade, na partilha da condição humana comum.
Dentro e fora da Igreja católica há que recusar um mundo desumanizado e com uma ética utilitarista que ameace a dignidade comum.
Dentro e fora da Igreja Católica há que construir uma sociedade mais aberta às margens, capaz de as trazer para o centro e de ver no seu sofrimento e estigmatização o fermento da mudança necessária para sociedades mais livres, dignas e felizes.
Uma Igreja Católica que se abra a estes desafios, ouça as companheiras e os companheiros de jornada e acolha e integre os que excluiu, marginalizou ou não procurou, fará parte de um mundo melhor e será fermento de uma mudança social, cultural e espiritual que o melhorará para além da sua própria mudança interior. É nessa convicção que procurámos contribuir para este exercício, respondendo ao apelo do Papa Francisco, que sentimos ser ao mundo e não apenas à sua hierarquia ou à sua Igreja.
Conceição Oliveira Lopes – Comunicóloga, professora, Universidade de Aveiro (aposentada).
Deolinda Machado – Ciências Religiosas, professora do Ensino Secundário (aposentada).
Eugénio Fonseca – Ciências Religiosas, professor do Ensino Secundário.
Fernanda Henriques – Filósofa, professora, Universidade de Évora (aposentada).
João Emílio Alves – Sociólogo, professor, Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Portalegre.
João Ferrão – Geógrafo, professor, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa (aposentado).
João Manuel Ferreira do Amaral – Economista, professor, ISEG, Universidade de Lisboa (aposentado).
José Manuel Pureza – Relações Internacionais, professor, Universidade de Coimbra.
José Manuel Sobral – Antropólogo, professor, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa.
Leopoldo Guimarães – Físico, ex-reitor da Universidade Nova de Lisboa.
Lurdes Serrazina – Matemática, professora, Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Lisboa (aposentada).
Maria José Manso Casa-Nova – Socióloga, professora, Universidade do Minho.
Maria Teresa Andresen – Arquiteta paisagista, ex-professora, Universidade do Porto.
Mendo Castro Henriques – Filósofo, professor, Universidade Católica Portuguesa.
Nuno Nunes – Economista, professor, ISCTE, Universidade de Lisboa.
Paulo Pedroso – Sociólogo, professor, ISCTE, Universidade de Lisboa.
Teresa Vasconcelos – Ciências da Educação, professora, Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Lisboa (aposentada).