Saborear os Clássicos IV

A casa onde nasceu o poeta, em Freixo de Espada-à-Cinta. Foto: Município de Freixo de Espada-à-Cinta.
Abílio Manuel Guerra Junqueiro nasceu em Freixo de Espada-à-Cinta (Bragança, Trás-os-Montes), de uma família abastada. Matriculou-se em Coimbra na Faculdade de Teologia; dois anos depois mudou para a Faculdade de Direito.
Pertenceu à Geração de 70, denominação do grupo de intelectuais que, na década de 1870, quiseram renovar a cultura portuguesa, na fase decadente do Romantismo.
Entre os homens não há fraternidade – há sócios.
(G. Junqueiro)
Guerra Junqueiro (1850-1923) era considerado no seu tempo um dos maiores poetas portugueses e até peninsulares. As gerações mais velhas ainda se recordam dos poemas Morena ou A Moleirinha. Na segunda metade do século XX, eclipsou-se.
“… Junqueiro tem uma obra poética menor, grandiloquência demagógica e sem imaginação, caindo na última fase num sentimentalismo pretensamente místico, franciscano…”(1)

Capa de Os Simples, de Guerra Junqueiro.
“… é certo que os ideais no fim oitocentista já não arrastam multidões (…), houve nele (além da intervenção política e defesa dos ideais republicanos, num estilo muito vigoroso), uma inclinação para a simplicidade mística” e é “precisamente nos textos menores (Os Simples, por exemplo) em que “o religioso metafísico” se releva que o poeta se perdura.”(2)
“Havia em Junqueiro um humorista, um realista, um lírico sem insipidez, um poeta intensamente original, mesmo nas suas desigualdades de eloquência tempestuosa, mas não chegou a revelar-se integralmente porque viveu obcecado em imitar outro (Victor Hugo) e desempenhou a todo o custo um papel. O papel passou de moda.” (3)
Excertos de duas obras de intenção crítica:
“(…) Gozar? Sim, mas com toda a segurança: / A razão e a luxúria, a liberdade e a pança / Que haja um grande sossego e haja prazer à farta: / O bordel e o gendarme, a saturnal e a carta / … Uma camisa branca, uma consciência preta. / Um ar um pouco sério, um nome, algum dinheiro, / Eis tudo o que se exige a qualquer bandoleiro / Para representar a farsa desta vida…” (4)
“(…) como é que tu, ó Egreja pretendes / Cerrando na tua mão um box enorme – o Inferno / Levar aos encontrões o espírito moderno… / Atirar à Justiça, a ideia, o pensamento / Às fogueiras da fé, ó bonzos, é impossível / Loucos! Ide dizer ao velho Torquemada / Que queime se é capaz n’um forno uma alvorada! / … Sacristas / Ajuntai, reuni os balandraus papistas / As fardas sepulcrais do exército da fé … / a consciência não é a besta de uma nora…” (5)
O poeta confessa-se

Guerra Junqueiro: “Atravessei há anos um período agudo, bem doloroso e triste, mas ao mesmo tempo salutar…”. Cartaz do arquivo da Câmara Municipal do Porto.
Em 1923, Luís de Magalhães fala no Porto com o poeta que ia em breve para Lisboa, falecendo nesse mesmo ano. Diz o escritor ao amigo: “Se não fosse a infernal política, eu teria feito com ele (Prometheu Libertado) um dos maiores poemas contemporâneos.”
Junqueiro refere depois ao amigo a crise que viveu: “… atravessei há anos um período agudo, bem doloroso e triste, mas ao mesmo tempo salutar. Ante a morte, próxima, senti-me electrizado, como por encanto, de energias súbitas … esbocei então este pequeno poema lírico Os Simples. É muito mais uma autobiografia psicológica que uma série de quadros campestres e bucólicos.” (6)
Minha mãe, minha mãe! / ai que saudade imensa…
“… no tempo em que ajoelhava orando, ao pé de ti. Caía mansa a noite …”.
É um poema luminoso: a presença espiritual da mãe revela-se “… na Lua branca, além, por entre os olivais / Como a alma de um justo ia em triunfo ao céu…” – sugere a Assunção de Santa Maria. “… E mãos postas, ao pé do altar do teu regaço, / Vendo a Lua a subir, muda, alumiando o espaço, / eu balbuciava a minha infantil oração…”
A oração é expressa através da repetição do modo conjuntivo optativo: “…Pedindo a Deus … Que mandasse um alívio a cada sofrimento / Que mandasse uma estrela a cada escuridão…” A repetição anafórica das preposições indica a quem era destinada a oração: “… Por todos eu orava e por todos pedia / pelos mortos no horror da terra fria / por todas as paixões… / pelos míseros… / Para toda a nudez um pano do seu manto / … e para todo o crime o seu perdão de Pai…”.
No final, a recordação da mãe torna-se presença da piedade, serenidade e paz interior: “… a minha mãe faltou-me era eu pequenino, / Mas da sua piedade o fulgor diamantino / Ficou sempre abençoando a minha vida inteira / Como junto de um leão um sorriso divino / Como sobre uma forca um ramo de oliveira!” (7)
Ó sonhador louco de outrora, teus sonhos onde estão?

Guerra Junqueiro, considerado, na sua época um dos maiores poetas peninsulares. Foto: Direitos reservados.
Há um outro poema, com uma estrutura dramática, dividido em três partes: na primeira, A Caminho, “um loiro peregrino, de olhos ingénuos”, inicia a sua peregrinação; todos o saúdam e os mais velhos avisam-no dos perigos. A estrela d´alva diz-lhe: “… por infernos deixas tua paz, teu lar!”
Na segunda parte, De Volta, ninguém reconhece o jovem que iniciou a jornada n’“um pobrezinho triste, arrimado ao bordão”; só a estrela d’alva o identificou: “Ó sonhador louco d’outrora/ teus lindos sonhos onde estão?…”
Na terceira parte, Regresso ao Lar: “Ai, há quantos anos eu parti chorando / Deste meu saudoso carinhoso lar!… / Foi há vinte?… há trinta?… / Minha velha ama, que me estás fitando, / Canta-me cantigas para eu me lembrar!… // Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida… / Só achei enganos, decepção, pesar… / Oh! A ingénua alma tão desiludida (…) / Canta-me cantigas de dormir, sonhar!… // Canta-me cantigas para ver se alcanço / Qu’ a minh’ alma durma, tenha paz, descanso, / Quando a Morte em breve, ma vier buscar!…”
Há o desejo de regresso à infância, no pedido do sujeito à Ama / Mãe – único vínculo duradouro: “Canta-me”; a progressiva sequência verbal exprime a finalidade do canto: (para) lembrar, dormir, ter paz, descansar, morrer. Afinal, tudo estava ali, no lugar onde iniciou a viagem: a vida, a morte. O resto foi uma ilusão. (8)
Bendito o Christo-Sol …
O poema Oração à Luz assemelha-se na estrutura à Oração ao Pão. Neste, o Pão é a metáfora do corpo e da alma de Cristo. Na Oração à Luz, esta é metáfora do sopro divino, do Espírito Santo: é ela que transforma o caos em cosmos: “… é carne humana, é sangue, é pensamento … por ti um sopro anímico e profundo / penetra o lodo, a rocha, a água, o ar…”
O poema é uma toada à vida, à agonia, à morte. Apostrofando o “Homem”, exclama: “…Ergue-te em pé, ergue essa fronte… Levanta à Luz esta oração… Bendito o Christo-Sol na cruz ardente…” (9)
A alegria pura

Casa-Museu Guerra Junqueiro-Porto. Foto © Eugénia Abrunhosa.
É nas Prosas Dispersas e noutras obras inéditas que Guerra Junqueiro desenvolve as suas ideias ético-filosóficas. O amor e crime são co-originários: ambos se manifestam no mundo. Cabe ao homem responder ao chamamento da sua consciência, que é a chamada de Deus: “… a alma de Jesus proclama o triunfo da santidade sobre o crime… do verbo odiar nasce o verbo amor. Toda a alegria pura vem do amor e todo o amor inclui o sofrimento. Tal como o peregrino, o seu destino foi um contínuo desenraizamento, até à verdadeira chegada – a morte / a morada de Deus.” (10)
Notas
(1) Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70, uma Revolução Cultural e Literária.
(2) Nuno Júdice, Poesia de Guerra Junqueiro.
(3) Pierre Hourcade, Temas da Literatura Portuguesa.
(4) Guerra Junqueiro, A Musa em Férias.
(5) Idem, A Velhice do Padre Eterno.
(6) Guerra Junqueiro, Prometheu Libertado, esboço do poema. Prefácio de Luís de Magalhães.
(7) Idem, Os Simples, poesias líricas.
(8) Ibidem.
(9) Guerra Junqueiro, Oração à Luz.
(10) Jorge Cunha, “Observações sobre o pensamento moral de Guerra Junqueiro”, in Actas do Colóquio da Universidade Católica Portuguesa (UCP)-Porto; e Joaquim Saraiva de Sousa, “Guerra Junqueiro, Poesia e Filosofia”, in Humanística e Teologia, revista da UCP-Porto.