
“Não tenhamos ilusões. Putin e os seus executores não ficarão pela Ucrânia. Por isso auxiliar a defesa desse país é defender a Europa e a democracia.” Foto © JANIFEST/Depositphotos.
Quem deseja a guerra? Estou certa de que todos os seres vivos e em particular os seres humanos escolhem a paz. Só se formos loucos empenhados num desejo de poder que ultrapassa tudo e todos é que não o faremos.
A história da Ucrânia é muito complexa, vem desde tempos imemoriais e não cabe neste artigo referir a variedade de situações que foram vividas. Recordemos o que aconteceu na época contemporânea:
“A União Soviética cai em 1991. Através de um referendo, no dia 1 de Dezembro [desse ano], a Ucrânia torna-se independente. Em 1994, são dadas garantias russas, americanas e britânicas em relação à soberania e integridade territorial da Ucrânia. A nova Constituição garante as liberdades democráticas (1996) e o parlamento torna-se um actor importante na sua política interna. Em 1997, a Rússia e a Ucrânia assinam um acordo, reconhecendo a soberania ucraniana sobre a Crimeia. Face à corrupção governamental e interferência da Rússia no processo eleitoral, a revolução laranja leva ao poder o presidente pró-ocidente V. Yushchenko. Em 2008-09 deseja candidatar-se à União Europeia e candidata-se ao Plano da Acção para a adesão à NATO. Em 2013, a Rússia inicia uma guerra comercial com a Ucrânia, forçando o governo a recuar na assinatura de um acordo com a UE, colocando um presidente ao seu serviço. Há protestos em massa que se tornam conhecidos como Revolução da Dignidade. 2014-2015: a reacção da população torna-se mais violenta; a Rússia lança uma guerra híbrida, assume o controle da Crimeia e envia tropas para a região de Donbass. O conflito russo-ucraniano dá origem à crise mais grave nas relações Leste-Oeste desde o fim da Guerra Fria.” [1]
Acontecimentos mais recentes: a Ucrânia foi invadida pela Rússia, a 24 de Fevereiro de 2022, explicando o invasor que não se trata de uma guerra, mas de “uma operação militar especial”. Cinicamente, a Rússia pensava assim submeter o país invadido ao seu domínio – em poucos dias – e continuar, invadindo outros países, a fim de concretizar o seu sonho louco, chauvinista e imperialista: restaurar o império russo do tempo dos czares.
A Ucrânia, país soberano, não hesitou em se defender, face à atitude arbitrária, prepotente da Rússia, invadindo o seu território.
A ajuda à Ucrânia, por parte dos países europeus e dos Estados Unidos – que se uniram pela defesa da Ucrânia, através da solidariedade para com milhares de exilados e da ajuda da NATO – é um factor importante para a resistência do povo ucraniano. Assistimos na própria Rússia a posições contra a invasão da Ucrânia, manifestações e tomadas de posições dos jovens contra a mobilização e não participação na guerra. Outras pessoas na Rússia têm tomado corajosamente uma atitude contra a invasão desencadeada por Putin e seus acólitos.
Numa sua crónica no Público, Frei Bento Domingues O.P. refere um discurso de Tomáš Halík, teólogo checo muito conhecido e transcreve alguns excertos de um discurso deste teólogo em 2017, em África. A certa altura, Halík fala dos “novos tempos” que se aproximam, da “cegueira e a ingenuidade dos políticos europeus, guiados apenas por interesses económicos, [que] contribuíram para que a Rússia se tornasse num estado terrorista que se excluiu do mundo civilizado com a ocupação da Crimeia (…)”. Na verdade, Putin, ao ver “o despertar das revoluções coloridas na sociedade civil da Europa oriental”, teve medo que “essa faísca” acontecesse no seu país [2].
Entretanto, nos meios de comunicação russos, uma massiva “informação” bombardeia sistematicamente há já alguns anos os seus receptores contra os malefícios do “Ocidente”, caracterizado como um bando de depravados, drogados, tarados sexuais, prontos a invadir a Rússia… e muito mais. É assim a personalidade de Putin. Pretende atingir os seus objectivos megalómanos, fomentando a divisão, a discórdia, o ódio contra o “Ocidente”.
“A Rússia – dizia-me uma jovem russa, há uns anos, quando aprendia português – está dividida em dois países: Moscovo é cosmopolita, ciente do que se passa no mundo; o resto, o interior, é outro país”.
Atendendo ao analfabetismo político russo e à forte ditadura, as pessoas – principalmente quem não vive em Moscovo ou noutras grandes cidades – acreditam piamente na falsa informação dos dirigentes do Kremlin.
Quando invadiu a Ucrânia, pensava Putin que o Ocidente não mexeria um dedo e o país invadido cair-lhe-ia nas mãos numa semana ou em pouco tempo. Tal não aconteceu; os países europeus (membros ou não da União Europeia), os EUA, a OTAN/NATO uniram-se para ajudar a Ucrânia na resistência à invasão/anexação russa.
Não tenhamos ilusões. Putin e os seus executores não ficarão pela Ucrânia. Por isso auxiliar a defesa desse país é defender a Europa e a democracia.
Sabemos que neste momento – e todos os comentadores geopolíticos e especialistas de estratégia militar o dizem – ainda não chegou o momento das negociações. Porque quer os ucranianos, quer os russos não chegaram ainda a um ponto em que lhes seja imprescindível negociar o fim da guerra. É esta a realidade nua e crua. “Putin só pára quando partir os dentes”, dizia José Milhazes.
No dia 25 de Fevereiro telefonei a uma amiga ucraniana que agora tem o estatuto de luso-ucraniana. Fiquei espantada com o seu comentário vigoroso: “Nunca nos renderemos. Vamos combatê-los até ao fim”.
Virou-se uma página da história. Sejamos cidadãos do mundo, conscientes de uma situação muito complexa que nos atinge a todos. Não tenhamos ilusões a esse respeito. Estamos no mesmo barco.
Objecção de consciência e actividade cívica

É referida diversas vezes a importância de se ser objector de consciência. Na Segunda Guerra Mundial, o camponês austríaco Franz Jagaerstatter (1907-1943) foi objector de consciência e foi condenado à morte por isso.
Num país democrático, regido por leis claras e honestas, num caso de guerra, aceita-se que algumas pessoas sejam objectoras de consciência, mas estas não cruzam os braços. Ajudam, não na linha dos combates, mas auxiliam de um modo ou outro as vítimas da guerra, por exemplo, prestando auxílio nos hospitais, etc. Ou seja, exercem uma “actividade cívica”.
Quanto a Dietrich Bonhoeffer, “teólogo de grande relevância e mártir da loucura de ideologia nazi” [3] este não era um objector de consciência.
Em primeiro lugar, no início da tomada do poder do partido nazi, o pastor luterano fez reuniões com jovens em todo o mundo, mostrando-lhes o perigo do nazismo e a possibilidade de uma guerra, defendendo obviamente a paz no mundo. Calaram-lhe a voz, os movimentos. Então tomou uma decisão, ele e outros companheiros e amigos: infiltrarem-se nos serviços secretos nazis para organizar “uma conspiração para eliminar Hitler”. [3] Correu mal a acção planeada e a vingança de Hitler e dos seus sequazes foi terrível.
A um prisioneiro italiano, seu companheiro de prisão, que lhe perguntava como era possível que um cristão e um pastor como ele tenha participado numa conspiração destinada a matar Hitler, Dietrich Bonheffer respondeu, segundo o relato de Eberhard Bethge: “Quando um louco lança o seu automóvel sobre o passeio, eu, como pastor, não me posso contentar em apenas enterrar os mortos e consolar as famílias. Se me encontro nesse lugar, devo saltar e agarrar o condutor, sentado no volante.”
Dietrich foi condenado à morte e executado por enforcamento e depois suspenso, nu – como Jesus Cristo – de um gancho de ferro fixo na parede.
Dietrich Bonhoeffer escreveu um texto, não concluído devido à sua prisão: Ética. Diz ele numa passagem:
“A realidade deve ser teologicamente interpretada a partir de Jesus Cristo que se faz homem e entra no mundo tal como é. Precisamente na cruz, Deus mostra que não quer existir sem o mundo nem o ser humano, e assim o mundo, embora no seu carácter trágico, é reconciliado e a realidade assume uma nova perspectiva. Sob esta luz é posta em destaque, portanto, a crise dos tradicionais critérios éticos erigidos em princípios, incapazes de aguentar as circunstâncias extraordinárias da sua época, revelando-se como verdadeiras armas enferrujadas.” [3]
Notas
[1] Plokhy Serhii, A Porta da Europa – Uma História da Ucrânia, Ideias de Ler/Porto Editora, 2022.
[2] Frei Bento Domingues O.P., crónica no jornal Público de 10/07/2022.
[3] Giorgio Cavalleri, Dietrich Bonhoeffer – teólogo e mártir do nazismo, Paulinas Editora, 2019.