
Henri Teissier, arcebispo de Argel: “Um monge jardineiro pode partilhar coisas com significado espiritual”, mesmo com vizinhos muçulmanos. Foto © Pedro Cunha, cedida pelo autor
Henri Teissier, antigo arcebispo de Argel entre 1988 a 2008, defensor e praticante do diálogo inter-religioso que acompanhou o caso do assassinato dos monges de Tibhirine, morreu na madrugada desta terça-feira, 1 de Dezembro, no hospital Édouard-Herriot, em Lyon (França), de onde era natural, depois de ter sofrido um AVC na véspera em sua casa. Tinha 91 anos.
Um dos grandes especialistas e praticantes do diálogo islâmico-cristão, Teissier dizia que a Igreja Católica não deve evitar as situações delicadas: “É nas situações de tensão que a Igreja deve estar presente, mesmo que tenha de assumir riscos para tentar anunciar a sua mensagem de paz, de respeito recíproco. Se evitarmos as situações delicadas para falar apenas no tempo em que ninguém precisa de uma mensagem, a Igreja é infiel à missão que recebeu”, afirmava, numa entrevista que lhe fiz, em Setembro de 2012, para o Público.
Ele próprio foi ameaçado de morte várias vezes. Numa delas, em 29 de Outubro de 1993, assinada pelo GIA [Grupo Islâmico Armado], declarava-se que todos os cristãos que não partissem da Argélia antes de 1 de Dezembro seriam assassinados. “Os monges não eram os únicos a ser ameaçados: toda a comunidade estrangeira e, particularmente, a comunidade cristã, estava ameaçada.”
Foi nessas circunstâncias que Teissier acompanhou muito de perto o caso dos monges de Tibhirine, contado no filme Dos Homens e dos Deuses, de Xavier Beauvois. Depois de um grupo terrorista ter passado pelo mosteiro ameaçando os monges, o prior pediu ao bispo que falasse com todos os monges para saber se eles ficavam no mosteiro por decisão livre.
Ia ao mosteiro trapista com frequência, para rezar e partilhar com os irmãos, em comunidade e individualmente. Depois das conversas que teve com eles, todos os monges decidiram ficar. Sete deles acabariam raptados num segundo assalto e mortos em 1996. Mas os sete monges trapistas foram apenas algumas das vítimas dos anos de terror que o país viveu, e que provocou milhares de vítimas, entre as quais mais de uma centena de imãs muçulmanos e outros doze cristãos, incluindo o bispo Pierre Claverie, de Oran.
A Argélia vivia, nessa altura, um tempo muito sombrio: “Não eram apenas os cristãos a ser ameaçados, era toda a sociedade argelina. Os que estavam do lado do Estado eram ameaçados e os que estavam do lado dos islamitas eram ameaçados pelo Exército e pelas forças da ordem.” Mas na época, contava, a reflexão dos cristãos foi sobre a “fidelidade” ao povo argelino.
“Quando os monges foram raptados, doze pessoas pertencentes a um grupo chamado Ribat es-Salam, o laço da paz, estavam no mosteiro para um encontro. Foi a primeira vez, após dois anos, que [o prior do mosteiro,] Christian de Chergé, permitiu que o encontro se fizesse em Tibhirine, porque ele tinha a impressão que o perigo era menor. Aparentemente, os terroristas não sabiam que estava o grupo na hospedaria ou só tinham ordem para levar os monges”, contava em 2012, quando veio a Portugal para apresentar o livro Christophe Lebreton – Monge, mártir e mestre espiritual para os nossos dias, em que reflectia sobre os escritos de um dos monges assassinados, que mantinha um diário.
Uma “atmosfera de tolerância”
Nascido a 21 de Julho de 1929, Henri Teissier foi ordenado padre já em Argel, em 1955, depois de ter estudado no Seminário Carmelita de Paris. Esteve depois no Instituto Dominicano do Cairo, para aprender árabe, ao mesmo tempo que testemunhava a ascensão do nacionalismo pan-árabe, como recorda o Vatican News.
Regressando a Argel em 1958, foi um dos cerca de vinte padres (incluindo o cardeal Léon-Étienne Duval, a quem viria a suceder como arcebispo de Argel) a obter a nacionalidade argelina em 1965. Bispo de Oran em 1973, coadjutor de Duval em 1981, sucedeu ao cardeal em 1988, ficando no cargo até 2008.
Ali deu contínua prioridade à sua opção pelo diálogo, mesmo em situações de conflito. Jean Fisset, missionário na Argélia e membro dos Padres Brancos, define deste modo no Vatican News, o modo como olhava a missão de Teissier: “Deus é maior do que o nosso coração. Ele convida-nos a descobrir e a criar irmãos.”
Em 2005, o ex-arcebispo afirmava: “A existência de uma comunidade cristã na Argélia é a prova de que vivemos numa atmosfera de tolerância e que partilhamos as mesmas alegrias e provações que os outros povos do planeta.”
As provações eram, ainda em 2012, muitas e largas: um salário mínimo de cerca de 150 euros mas, apesar de tudo, um Estado que promove a construção de habitação social – “a habitação é a primeira grande dificuldade” e, de outro modo, as pessoas não conseguiriam pagar um arrendamento ou uma casa.
Num encontro em que participara em Istambul, em 2012, antes da passagem por Lisboa, esteve com líderes muçulmanos (e cristãos) a debater as relações mútuas. Os muçulmanos afirmavam “que as novas sociedades devem construir-se em conjunto e no respeito de uns pelos outros”, insistindo “no diálogo entre as diferentes correntes – não apenas entre cristãos e muçulmanos, mas também entre diferentes correntes muçulmanas e diferentes correntes cristãs”.
Admitia os riscos desse diálogo, manifestava-se ainda esperançado com os movimentos da Primavera Árabe (e desencantado com o julgamento apressado e a falta de apoio da Europa a esses movimentos) e dizia que, em várias sociedades árabes, muita gente queria “uma sociedade democrática que respeite a diversidade”.
Como um jardineiro pode partilhar coisas espirituais com os vizinhos muçulmanos

A propósito do livro do padre Christophe, que pedia para distinguir entre o islão e as caricaturas do islão, dizia: “Trata-se de valorizar o encontro entre pessoas onde ele existe. Uma das razões pelas quais escrevi este pequeno livro foi para mostrar como um monge que trabalha como jardineiro, com alguns vizinhos enraizados no islão tradicional, pode conseguir comunicar e dizer coisas significativas. Isto não resolve o problema de tudo o que se passa na Argélia, mas manifesta que, num dado lugar, quem respeite os seus parceiros pode falar com eles e partilhar coisas com significado espiritual.”
Caso semelhante era o do irmão Luc, que passava horas infindáveis, como médico, a atender os seus doentes, tratando-os e conversando com eles (O actor que desempenhou o seu papel no filme, Michael Londasle, morreu em Setembro).
O exemplo dos trapistas de Tibhirine levava-o mesmo a dizer, na entrevista já citada, que era possível outro modelo de vida monástica: “Os mosteiros na Europa não têm senão relações com os amigos dos monges, que vêm de longe, e não forçosamente com a vizinhança. E isso foi um sucesso dessa pequena comunidade: poder estabelecer uma relação de confiança, de colaboração, de serviço recíproco com os vizinhos muçulmanos. Quando fui de novo ao mosteiro, dois anos depois do rapto dos monges, com o responsável da ordem cisterciense, perguntar ao chefe da aldeia se podíamos reenviar uma comunidade – pois não queríamos colocar a população em perigo –, eles responderam: ‘O perigo está aí; se os monges estiverem cá, viveremos com esperança; se não estiverem, viveremos sem esperança’.”
Henri Teissier promoveu a causa da beatificação dos mártires trapistas e, há dois anos – a 8 de Dezembro de 2018, participou na cerimónia da sua beatificação, em Oran. A sua morte ocorreu no mesmo dia em que morrera (em 1916) Carlos de Foucauld, que viveu entre os tuaregues e acabou também morto por extremistas. “Imaginamos o belo encontro com o irmão Carlos, o bem-aventurado e futuro santo cuja festa é hoje celebrada no Céu”, escreveu Paul Desfarges, actual arcebispo de Argel. “Um aceno do Céu à nossa Igreja na Argélia que tanto deve ao padre Teissier na sua história, desde a guerra de libertação, a independência do país, a passagem dos anos negros, até aos nossos dias.”