
Ensaio de Visão Hildegard na Capela das Barrocas, em Aveiro. Foto: Direitos reservados.
O cenário é o da Capela do Senhor das Barrocas, construída no século XVIII, em Aveiro. No início, ouve-se um texto referido a Hildegarda de Bingen, a mística, médica e música do século XII que o Papa Bento XVI proclamou como doutora da Igreja em 2012 (e recentemente foi evocada no 7MARGENS): “É em mim constante / Um temor que me faz estremecer, / Mas estendo a mão para Deus / Para que ele me ampare / Como o vento sustenta uma pena.”
Logo depois, cinco bailarinas ocupam outras tantas janelas do templo de planta octogonal, que terá sido projectado por Gaspar Ferreira, o provável autor da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Em fundo, estará o som de A Unção, música composta por Hildegarda, monja e prioresa do mosteiro de Bingen, na Alemanha (70 quilómetros a oeste de Frankfurt).
O espectáculo de dança Visão Hildegard, dirigido por Suzana Rosas, decorre a partir das 17h30 deste sábado, 29, na capela das Barrocas, como é conhecido na cidade este lugar de culto católico. É a primeira de um conjunto de actividades culturais que, até final do ano, pretendem promover, nas diferentes igrejas da paróquia da Vera-Cruz, “o diálogo com a cultura e as novas linguagens, usando a linguagem da Igreja e do espaço sagrado”, diz o pároco, padre João Miguel Alves.
O espectáculo deste sábado, com 13 bailarinas, reúne a dança, a música e a poesia com o objectivo de “alcançar aquilo que Hildegarda de Bingen sempre procurou ao longo da vida: uma visão de Deus”, diz a nota de apresentação do programa. “A performance agora apresentada é uma imersão na contemplação de Hildegarda e, ao mesmo tempo, um acto de louvor com a sua própria composição musical e poética, na brevidade do tempo, mas na intensidade de uma vida completa” que incluiu as dimensões de monja beneditina, escritora, teóloga, compositora, dramaturga e médica.
A ideia, conta o padre João Alves, nasceu no âmbito do Festival dos Canais, que decorreu na cidade no Verão. Uma versão mais curta do espectáculo foi na altura apresentada na capela de São Gonçalinho, outro dos lugares de culto da paróquia onde decorrerão actividades durante este ano.
Suzana Rosas “ficou entusiasmada” com o convite a alargar o projecto. A encenadora “conhecia quase só a música de Hildegarda de Bingen”, recorda ainda o pároco, e o convite levou-a aprofundar a biografia da mística do século XII, que era admirada por bispos e papas.
Outras músicas de Hildegarda integram também o espectáculo. Uma delas é a antífona O virtus Sapientiae (“Ó virtude da Sapiência”): “Ó virtude da Sapiência,/ em anel circundaste/ envolvendo o mundo,/ na única via de vida,/ tem três asas:/ a primeira voa no alto,/a segunda da terra esvoaça,/ a terceira por todos os lados voeja./ Louvor a ti, Sapiência, como é justo.”
Durante o resto do ano, com um ritmo mais ou menos bimestral, também as igrejas de Nossa Senhora da Apresentação (paroquial) e Nossa Senhora do Carmo, e as capelas de São Gonçalinho, de Nossa Senhora das Febres, das Barrocas e de Nossa Senhora da Alegria receberão tertúlias, exposições de fotografia e escultura, teatro, dança, cinema e concertos.
Em Maio, por exemplo, as esculturas em pedra e madeira de Paulo Neves (autor de um presépio da Basílica de Fátima) tentarão levar uma “dimensão primaveril e pascal” a várias das igrejas. Em Outubro, o ciclo de cinema prolongará a experiência realizada na quarta-feira, com a exibição do filme A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos. E em Dezembro, os concertos de Natal tentarão retomar a ideia da música em casa, com artistas a tocar na casa de pessoas que abrirão as portas para que as pessoas possam assistir nas ruas.

A rua e os adros ou as praças envolventes das igrejas serão outro elemento importante: “Ao fazermos o convite a alguns grupos da cidade, estamos a tentar explorar um tema que possibilite o diálogo e a tentar criar espaços de participação comunitária”, diz João Alves, que é também colaborador regular do 7MARGENS.
Este programa, com o título Comunid’Arte, integra-se num projecto mais vasto, o Contempor’Arte, que a paróquia está a dinamizar como estratégia de debate e inserção cultural na cidade, e que se completa com o Roteiriz@re, mais voltado para ligar a exploração turística e a dimensão espiritual.
Ao mesmo tempo, pretende-se colmatar uma dimensão que a candidatura da cidade a Capital Europeia da Cultura para 2027 não tinha inicialmente presente: a do património espiritual e religioso. Foi depois de uma conversa com as instâncias camarárias que o projecto se solidificou também como forma de vincar essa dimensão mais ausente do processo da candidatura.
“A programação pretende criar uma visão integradora e inclusiva do património, da arte e da cultura, fundindo-a com os templos religiosos da Paróquia da Vera Cruz, os quais serão nesses momentos convertidos em palcos performativos”, lê-se na apresentação do programa, que destaca ainda a ideia de “mostrar a Igreja/Paróquia como uma entidade activa para a apresentação de propostas culturais, suscitando e possibilitando o diálogo entre fé, cultura e espiritualidade”.
A identidade da comunidade é outra das ideias presentes, tal como o cruzar a dimensão artística e cultural com a caminhada sinodal que a Igreja encetou. “Trata-se de construir comunidade entendendo-a não apenas como comunidade cristã, mas naquilo que é como comunidade humana”, diz o padre João Alves ao 7MARGENS. “A construção comunitária também se faz com a Igreja a dialogar com diferentes expressões culturais, estabelecendo uma relação com a sociedade civil, a cultura, a dimensão social e política”, acrescenta.
O projecto, admitem ainda os seus responsáveis, pode vir a incluir residências artísticas, uma exposição de arte sacra, tertúlias sobre temas ligados ao património e arte sacra, bem como outros concertos de música sacra, erudita e clássica nas igrejas. A programação pode ir sendo acompanhada na página da Comissão Diocesana de Cultura, de Aveiro.
Para já, a Visão Hildegard irá abrir o olhar para o mais que aí vem.