
A Biblioteca de Alexandria numa antiga gravura. Hipátia foi dos últimos intelectuais a usá-la, recorda Maria Dzielska no seu livro.
Hipátia de Alexandria viveu entre o declínio da cultura helénica e o início do poder hierárquico da Igreja cristã (séc. IV e V d. C.).
“Pelas suas consequências, uma das mais trágicas falsas vias para a Igreja cristã foi, depois do fim das perseguições, a ligação entre o poder imperial romano e a hierarquia eclesiástica.” (Padre Anselmo Borges, “Poder e autoridade”, Diário de Notícias, 11-12- 21)
“Alexandria do séc. IV d. C. é a Atenas do séc. V a. C.”
Alexandria, cidade do Império Romano do Oriente, com a Biblioteca mais famosa da Antiguidade, é o centro intelectual mais importante da cultura helénica no fim do Império.
Hipátia, nascida em Alexandria em 355 d. C., estudou em Atenas e regressou depois a Alexandria. Vivia com o pai, Theon, célebre matemático e astrónomo falecido no início do séc. V.
Tal como o pai, Hipátia tinha um círculo de discípulos, provenientes de diversas regiões que se agrupavam à volta da Mestra, os /hêtairói/, “companheiros”.
Considerada “mais talentosa e subtil do que o seu pai”, Hipátia dava lições de Matemática e Filosofia neoplatónica. A Matemática era “a geometria divina” e a astronomia a disciplina mais elevada.
Como todos os matemáticos de Alexandria, Hipátia associava à Matemática as ciências ocultas dos gregos: escritos teológicos órficos e pitagóricos.

“Buscar o olho enterrado dentro de nós”
A filosofia neoplatónica pretendia a “transformação” da pessoa, aproximá-la do divino, desenvolvendo a pequena centelha divina que o homem possui no recôndito do ser. Isso deveria acontecer através do “guia divino”, do Mestre, neste caso Hipátia, que orientava os alunos para esse objectivo, através do conhecimento racional e da busca da perfeição ética no quotidiano. Ou através do silêncio e da contemplação, de cânticos religiosos e da iniciação à filosofia esotérica.
“Temos tempo para a filosofia mas não tempo para fazer o mal” (epístola 148, de Sinésio a Olimpo, ambos alunos de Hipátia).
É através de cartas/epístolas entre os discípulos e da própria mestra que conhecemos verdadeiramente Hipátia e o Círculo de jovens abastados e bem-nascidos, sedentos das verdades da mestra. Futuramente, estes tomarão lugares de destaque na sociedade, nas vias eclesiástica e política.
Sinésio, por exemplo, no início do séc. V, torna-se cristão e o patriarca Teófilo designa-o depois bispo de uma cidade da Líbia. Olimpo, seu grande amigo, era já cristão.
Esses círculos de estudo eram abertos a todos, independentemente da religião que professavam. Era essa a tradição em Alexandria.
“Hipátia era para os seus alunos como uma espécie de mãe e irmã”
Casada “com a verdade”, era uma figura venerada não só no seu círculo de discípulos, mas também nos círculos políticos e culturais da cidade. Discursava em conferências mais alargadas em sua casa ou numa sala pública.
Tal como na antiga Atenas, em Alexandria os políticos recorriam a filósofos importantes – como Hipátia – a fim de serem aconselhados. Um deles era Orestes, cristão, prefeito do Imperador na cidade.
Desta forma, Hipátia, estimada pela elite intelectual e governamental da cidade, simpatizante do cristianismo, indiferente aos cultos pagãos realizados pelo povo, manteve-se neutra quando o patriarca Teófilo, em 385, inicia uma campanha contra o paganismo.
A estátua do deus Serápis foi destruída à machadada pelos cristãos amotinados e o seu templo, Serapeu, transformado numa igreja.
A intelectualidade alexandrina que prestava culto ao paganismo tomou a defesa dos seus deuses. Houve grandes lutas entre pagãos e cristãos.
Hipátia não era politeísta; não tomou posição nesta contenda.

Uma batalha pela pureza da Fé
Entretanto, Cirilo toma posse como bispo de Alexandria. Conhecido como homem ávido de poder, desencadeia um ataque cerrado contra todas as crenças não cristãs. Expulsa os judeus que viviam em Alexandria desde o tempo da fundação da cidade por Alexandre Magno. O seu exílio forçado levou a um desastre económico na cidade.
Orestes, prefeito, insurge-se contra as medidas de Cirilo. Os apaniguados do bispo iniciam ataques a Orestes, desencadeando-se um grave conflito.
Mas Orestes era cristão e a classe dominante e Hipátia apoiam-no. Defendiam a antiga civitas (cidadania), assente no governo civil e na conversação, não na violência. A autoridade religiosa não deveria estender-se à área municipal e imperial.
Inveja e difamação
Há muito tempo que Hipátia, a “bem-amada” pela intelectualidade de Alexandria, fazia sombra a Cirilo, não benquisto na cidade.
O bispo instigou então uma campanha contra a filósofa, acusando-a de “práticas de magia negra” e influenciadora de Orestes e dos principais da cidade.
Em Março de 415, em plena Quaresma, quando Hipátia regressava a casa na sua carruagem, foi apeada por uma multidão enfurecida. Morta pela populaça, arrastada pela cidade até ao crematório onde queimaram o corpo.
Orestes resignou ao seu cargo. O medo espalhou-se pela cidade.
(Comentário baseado na obra de Maria Dzielska, Hipátia de Alexandria, ed. Relógio D’ Água, 2019)
Maria Eugénia Abrunhosa é licenciada em Românicas e professora aposentada do ensino secundário.