
Infância. Abusos. Série “Childhood Fracture” (V), de Allen Vandever. Reproduzido de Wikimedia Commons
Na conferência de imprensa da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, que decorreu na manhã desta quinta-feira, 30 de junho, foram lidos três testemunhos de vítimas de abusos, cujo anonimato foi mantido. Num dos casos, a vítima fala do que significou o abuso para a sua fé. Neste caso, o texto lido é um excerto de um depoimento mais longo, mas foi a própria vítima, um homem, que manifestou o desejo de que o depoimento fosse divulgado. Pela sua importância, o 7MARGENS divulga a seguir esse texto. O título é da nossa responsabilidade.
Homem pedófilo,
Deixo para o fim desta carta, que já vai demasiado longa (não mereces tanto do meu tempo), uma dimensão muito interna, muito íntima. Porque me recordo de ti num encontro da Igreja, quero que saibas o que fizeste à minha fé.
Cresci cristão, católico, no seio de uma família praticante e que me disseram ser ativamente empenhada numa igreja humanizadora e humanizada. Acreditei desde pequeno e mantenho-me fortemente crente. Cresci em ambientes em que a fé era apresentada com música, alegria e presença. Não foi um crescimento de incenso e velas, embora a luz das velas tenha sido companheira de muitas orações.
Fiz equivaler a palavra Deus a Amor, sempre, ainda o faço. Um amor que nós não conhecemos, nem experimentámos com verdade. Talvez o amor que sentimos pelos filhos quando no-los depositam nos braços pela primeira vez, quando esboçam o seu sorriso, que parece o centro do mundo naquele momento, quando 38º de febre são a nossa única preocupação e principal fonte de alegria quando desaparecem, talvez tudo isto seja a centelha mais próxima que conseguimos ver desse Deus de amor em que acredito.
Ter fé implica ter confiança, ter esperança, agir por amor. Confiar que alguém nos ama, como os pais amam os filhos e que esse amor repousa em nós. Como os pais amam os filhos. Puseste-me a crescer numa dialética tremenda e demasiado complexa para uma criança. Confiar que nos amam como os pais amam os filhos. Os meus confiaram em ti. Eu confiei em ti. Foi lá, naquele espaço tão bonito. Confiei, confiámos. E aqueles que me amaram sempre tornaram-se o objeto da minha desconfiança. E Deus no meio disto? A serenidade do amor, onde ficou pousada?