
“É evidente que é indispensável ao funcionamento da vida em sociedade estabelecer juízos e condenações”. O Pensador da Porta do Inferno (Museu Rodin, Paris). Foto: Jean-Pierre Dalbéra / Wikimedia Commons
“O Homem é o Homem e as suas circunstâncias”, dizia Ortega e Gasset. O que é o Homem? Quais as circunstâncias em que se encontra? De que forma é que estas o moldam ou condicionam?
Antes de mais, podemos começar por concluir que há uma relação fundamental na definição de cada ser humano: o modo como se relaciona com as circunstâncias que o rodeiam, e que circunstâncias são essas. Ninguém se define sem uma história e um contexto. Uma das formas mais banais de matar é através de um juízo apressado que ignore, propositadamente ou não, as circunstâncias do outro. Olhar apenas para um acontecimento descontextualizado é a forma de juízo mais cómoda, por ser a menos exigente. É comum dizer que, contra factos, não há argumentos, esquecemo-nos é de que há sempre circunstâncias.
Dizer que o Homem é formado pela relação que criou com as circunstâncias em que vive é, antes de mais, optar por uma visão integral que nos responsabiliza e justifica. Assumir que, queiramos ou não, somos influenciados por um conjunto de variáveis, é um importante passo no sentido da compreensão e responsabilização pelos nossos atos e decisões. Não somos aquilo que idealizamos, nem somos autossuficientes. Todos carregamos connosco um contexto de vida que nos molda. Reconhecê-lo é crescer em sentido de responsabilidade. Quanto maior a nossa consciência, maior a responsabilidade. Um primeiro passo para sermos senhores de nós mesmos é conhecer as nossas circunstâncias e procurar conhecer as daqueles com quem lidamos. Se olharmos para a reação de uma pessoa procurando perceber o contexto em que agiu e as circunstâncias que a formam, o nosso juízo será muito diferente.
É evidente que é indispensável ao funcionamento da vida em sociedade estabelecer juízos e condenações. Sem isso a convivência humana seria impossível. Mas um dos principais ensinamentos que poderemos retirar desta frase, é a necessidade de sermos muito atentos a condenar e cautelosos a julgar, reconhecendo que todos temos juízos apriorísticos e condenações pré-fabricadas. Quem não olha com desprezo e censura a alta criminalidade financeira? A crueldade cometida contra crianças ou pessoas vulneráveis? Quantas vezes censuramos determinadas tendências políticas, julgando-as inadmissíveis? E, contudo, não seria pensável exigir que não o fizéssemos. É um excelente sinal da nossa sensibilidade e atenção ao mundo.
Porém, ao mesmo tempo, importa questionar quantos milimétricos atos de pequena crueldade ou indiferença praticamos? Quantas vezes deixámos de renunciar a certos benefícios em nome de um bem maior? Quantos de nós, apregoando-nos democratas e pluralistas já decidimos banir da réstia da nossa consideração certas ideologias? Quantas pessoas a nossa maledicência já condenou? Quantas vezes permanecemos calados?
O Homem é o Homem, e as suas circunstâncias. Estamos repletos de contradições e fragilidades. Essa é uma postura de humildade que importa reconhecer, não para nos calarmos e tornarmos seres formatados e desprovidos de sentido crítico. Antes, para assumir com franqueza as nossas posições e defendê-las. Silenciar é negar a singularidade humana. Negar humanidade e vivências com as quais todos poderão ter algo a aprender. Fugir ao contraditório destrói mais convicções do que as que protege. É o encontro com a alteridade que nos ajuda a definir. Importa por isso partir para esse encontro de coração aberto e seguro. Diante de mim está sempre um mestre, mas também um aprendiz a quem posso enriquecer o caminho.
Numa primeira leitura, assumir que cada pessoa é definida pelas próprias circunstâncias, pode fazer-nos cair na tentação de um total relativismo, que nos pouparia à árdua tarefa de perceber o outro, olhar sua história, sabendo que esse olhar é condicionado pela nossa, e por isso, não alcançaremos uma verdade absoluta.
A busca de uma verdade transcendental, ou a tentativa de demonstrar a sua inexistência, desvia-nos das nossas humanas possibilidades. Aquilo que, considerando-nos seres humanos, feitos de uma história, podemos almejar alcançar é a verdade de coração, uma postura de honestidade e integridade. Essa, sim, é possível e um imperativo para a nossa consciência.
Sofia Távora é jurista e voluntária no Serviço de Assistência Espiritual e Religiosa do Hospital Dona Estefânia.