
Ilustração © Susana Braguês, cedida pela autora
primeiro degrau
Conheci um homem quando ele tinha decidido que chegara a hora de tornar-se Velho. Conheci-o quando eu tinha decidido que chegara a hora de tornar-me Cristão. Ele nos sessentas, eu nos vintes. Em dias parecidos a estes, aconteceu pela primeira vez o verso que lhe ouvi repetir tantas vezes mais, até fazer em mim morada: “Estou a pensar em Deus.” Aconteceu num banco de jardim virado para o Sado. “E agora?”, perguntei. “Estou a pensar em Deus.” Nele, era um dizer tão natural como “chega-me a água” ou “o vento está frio”. Continuo sem domesticar esta frase, permanece um dizer indomável dentro de mim, mas acompanha-me tão fiel e devotado como um cão na tangente do rebanho.
Há vinte anos, inquietava-me aquele “em Deus”. Como se pensa “em Deus”? Isso faz de Deus assunto ou lugar?
Hoje, surpreende-me o que na altura não me agarrava ainda os colarinhos: “Estou a pensar.” Por ingenuidade, estava convencido de que pensar era exercício natural como andar ou assobiar. Sei hoje que não. Pensar é coisa que anda ali entre a arte, a ciência e o namoro, convoca diversos nervos e moções: a imaginação, a sensibilidade, a memória, os sentidos, a história das relações, a curiosidade das culturas, a agilidade do espírito… e o império da vontade.
segundo degrau
Lembro-me da primeira vez que alguém me impôs necessidade de pensar. Uma carroça subindo a serra e um Velho sentado ao meu lado com as rédeas do burro na mão. Eu aprendia as primeiras letras. O Velho não reconheceria uma nem que fosse do tamanho de uma árvore. E começou um jogo suave, tão devagarento como o passo que levávamos, de perguntas a que eu reagia com resposta pronta. A cada resposta pronta, um som gutural de assentimento e a pausa suficiente para me dar tempo de ficar vaidoso por tão rápido e fácil acerto. Então, estando o menino de contas feitas com a sua própria inteligência, o Velho que só não sabia ler letras, deixava pingar outra pergunta que era um avesso da anterior, e esperava resposta. Uma e outra vez. Até eu me ver encurralado nas minhas respostas tão rápidas e tão à bulha umas com as outras, respostas que não se entendiam e se contradiziam. E o Velho repetia o ciclo (havia tanto tempo naquele tempo) introduzindo as suas minuciosas variações. Comecei a pensar. Tornou-se obrigatório. O primeiro exercício, tão exigente, era não reagir, parar antes de responder. Lembro-me do esforço físico de fechar a boca. Fechava os olhos e tapava com as mãos os ouvidos para me ajudar, como se a cabeça inteira fosse uma coisa a vazar. Forçar as palavras a ficarem dentro. A entenderem-se primeiro, dentro.
Experimentei realmente na tarimba do corpo o que depois aprendi na etimologia: pensar está associado ao exercício de pesar. Tomar o peso às coisas, dar peso às ideias, deixar ir o que não tem espessura nem massa, carregando o fardo de levar as coisas dentro até que elas se componham.
Hoje, agradeço a dupla valência daquela lição, porque o esforço de pensar me empurrou a refugiar-me no silêncio ali mesmo, um silêncio físico. Nunca se poderá agradecer como convém a dívida que nos deixa quem nos adestra para as coisas mais importantes.
terceiro degrau
É isto que me dá mais saudades no cristianismo que hoje temos. Alguns foram aos gregos para nos estragarem a arte de pensar, intelectualizando-a, colocando-a num reduto do corpo, às vezes contra o corpo, sempre sem ele… e cá estamos hoje, desajeitados para “Pensar [até] em Deus” com a imaginação e o desassombro, sem habilitações para um pensamento narrativo, sinalizador de kairos e atracção para uma metanoia sem afectação beata nem moralismo. Entregámos à burocracia o funcionamento das nossas comunidades grandes e ao amadorismo o funcionamento das nossas comunidades pequenas. O normal está entre o meio termo e as combinações intermináveis destas duas.
De vez em quando topamos com comunidades cristãs em que as pessoas são estimuladas ao exercício de pensar com tempo, pesar com vagar. Nesses casos, é quase palpável a desenvoltura do Verbo a fazer-se Carne e nem o Espírito consegue manter tão diáfano o anonimato que tanto preza nas suas acções.
E Velhos. Repito: é o que me dá mais saudades. É um constrangimento esta descoberta de que é possível ter muitos anos sem que a sabedoria floresça no corpo. Conheci homens e mulheres, Velhos, que me inspiraram a genuína vontade de querer ser Velho quando crescer. Esperava que fosse comum e, sobretudo, mais simples e natural. Fazem-nos falta referências sapienciais, vozes com peso para contarem histórias e conspirarem valores, memórias tão longas que identificam pelo tacto as raízes do futuro, Velhos que elogiem a lentidão e convoquem Deus para pertinho de nós. Dois espectáculos humanos me entristecem até ao oco: crianças mal amadas e velhos insensatos. Conheci um homem quando ele tinha decidido que chegara a hora de tornar-se Velho. Conheci-o quando eu tinha decidido que chegara a hora de tornar-me Cristão. Não podia supor, quando vim, que um homem assim fosse por aqui tão raro.
Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.