Homossexualidade e clero católico
Saiu na Visão [de 14 de Fevereiro] um artigo que, não obstante o sensacionalismo com que é apregoado na capa daquela revista, traz, na verdade, pouco de novo em relação a uma realidade bem conhecida: se, entre a população “civil” a percentagem de homens homossexuais anda à volta dos 10 por cento, entre padres católicos essa percentagem é bem mais alta. Segundo Frédéric Martel (autor do artigo e do livro “bombástico” que sai [esta quinta-feira, 21] em mais de 20 países, No Armário do Vaticano), quatro em cada cinco padres do Vaticano são homossexuais – independentemente, é claro, da questão de “praticarem”.
Ora, o tema dos padres gays suscita sempre a questão concomitante da sua irrelevância: se um padre católico é por definição um homem que abdica voluntariamente de ter uma vida sexual, não interessa se a sua sexualidade é hetero ou homossexual.
A minha posição é diferente. A questão da homossexualidade de muitos padres católicos não é para mim irrelevante, porque discordo da contradição intrínseca que consiste na existência de um clero obrigado a papaguear um discurso condenatório da homossexualidade, quando esse mesmo clero também é, em percentagem decerto discutível, constituído por muitos homossexuais.
O artigo da Visão menciona o meu nome de forma a sugerir que um tradutor da Bíblia casado com outro homem talvez não passe de andorinha solitária a prenunciar uma não-existente ou utópica primavera; mas como eu considero que a chegada dessa primavera é desejável, referirei aqui alguns aspectos, que redigirei de forma desiderativa.
1. Pessoalmente, gostaria que não houvesse qualquer problema (quer no interior da igreja, quer na opinião pública) no facto de um padre católico ter uma orientação sexual conducente a sentimentos de afecto relativamente a outros homens. Desde que os envolvidos sejam maiores de idade, a intimidade voluntária entre adultos deveria ser algo do foro privado. Lê-se na Bíblia que «nenhum homem sem testículos e sem pénis pode entrar na assembleia do Senhor» (Deuteronómio 23:2). Porquê o artificialismo de exigir de um padre católico que sonegue o facto de ter um corpo equipado por Deus com um órgão cuja função é propiciar prazer sexual? Pede-se a um padre que não use os olhos para ver ou que não use os ouvidos para ouvir?
2. Da parte das esferas mais altas da hierarquia católica, seria excelente se parassem de falar em homossexualidade com intuito condenatório e que o actual Papa se retratasse relativamente à afirmação absurda de que o sacerdócio deveria ser vedado a candidatos com orientação homossexual. Pelo que Frédéric Martel apresenta na sua investigação, se tal norma tivesse efeito retroactivo, o Vaticano tornar-se-ia uma cidade fantasma. Os pretensos “escândalos” que acontecem no interior da igreja com membros do clero só são escândalos na medida em que é a própria igreja a estigmatizar a homossexualidade como algo de negativo. Seria, de facto, um grande avanço se a igreja deixasse o foro íntimo à consciência de cada pessoa e parasse, de uma vez por todas, de interferir num campo onde não lhe compete impor preceitos que ela própria, igreja, é a primeira a infringir.
3. Eu gostaria muito que a igreja parasse de ocultar o facto de a base bíblica da condenação da homossexualidade ser imensamente discutível. Em todo o Antigo Testamento, com as suas mais de 600.000 palavras, há apenas duas passagens que proíbem um homem de ter sexo com outro homem como se esse homem fosse uma mulher. Pela parte que me toca, não me sinto minimamente interpelado ou condicionado por essa proibição, pois nunca fui a mulher de nenhum homem nem nunca fiz de nenhum homem a minha mulher. O livro de Martel tem, em França e em Espanha, a palavra «Sodoma» no título. Seria excelente que a igreja explicasse às pessoas que, no interior da própria Bíblia Hebraica, o episódio de Sodoma nunca é apresentado ou interpretado como castigo pela homossexualidade dos sodomitas. Não vou desenvolver aqui esse tema, pois é por de mais sabido dos biblistas e está expresso em Ezequiel 16:29. Por seu lado, a condenação que São Paulo faz da homossexualidade em duas passagens levanta infinitas dúvidas quanto à terminologia utilizada. Não é possível estabelecer com segurança quem, exactamente, ele tem a intenção de condenar.
4. Finalmente, quando um papa afirma que não lhe compete condenar um gay (para depois entrar na contradição de querer vedar o sacerdócio a gays), seria importante vincar que, em todas as palavras atribuídas a Jesus, não há uma única que condene a homossexualidade. O sexo homossexual é pecaminoso porque não tem como finalidade a procriação? Seria importante que as pessoas soubessem que os primeiros cristãos não valorizavam a procriação; e se lermos textos sagrados do primeiro cristianismo que não entraram na Bíblia por serem inconvenientes, encontraremos um Jesus que admite o sexo com finalidade não-procriativa. Seria bom que se soubesse que houve grupos de cristãos, nos primeiros séculos depois da vida terrena de Jesus, para quem a homossexualidade não constituía qualquer problema (é o caso dos cristãos mencionados no capítulo 26 do «Panárion» de Epifânio de Salamina). É claro que, já nessa altura, a igreja católica era contra a homossexualidade. Talvez seja tempo, finalmente, de a igreja perceber que o problema não está na homossexualidade, mas sim na sua atitude em relação a ela.
Frederico Lourenço é professor universitário e tradutor da Bíblia; o texto foi inicialmente publicado na página pessoal do autor na rede Facebook (foto do autor: © Pedro Loureiro/Revista Ler)
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