Humanidade e civilização: o que a pandemia pode dizer de nós mesmos e do nosso futuro? (Ensaio)

Graça Morais, Série “Sombras do Medo”, 2012; Aguarela e acrílico sobre papel. Col. Graça Morais
O mundo tal qual o conhecemos parou por um momento. De uma maneira abrupta e inesperada, as engrenagens materiais e humanas precisaram de interromper a sua produção mecanizada e aparentemente incessante. Os humanos se recolheram e tudo aquilo que girava em torno do seu movimento também foi obrigado a parar. Os produtos não têm clientes, os aviões estão estacionados, carros e comboios também não têm mais as pessoas inquietas a se movimentar pela superfície de um espaço terrestre, um tanto desgastado e aquecido. As cidades não têm visitantes e Nova Iorque finalmente adormeceu assustada. Diante do momento histórico em que vivemos, nos perguntamos o que essa epidemia tem a nos dizer daquilo que somos como civilização e o que nos espera em um futuro próximo?
Dizem alguns que o mundo como o conhecemos até então não será mais o mesmo e que a vida não voltará à nomalidade, não ao menos para aquela normalidade. Neste crepúsculo de uma velha civilização moderna, vislumbramos alguns cenários possíveis. Os mais pessimistas apontam para crises económicas, escassez de produtos e empobrecimento generalizado como uma consequência direta da epidemia. Por outro lado, movimentos de uma regeneração humana e uma nova consciência social e política pautada na solidariedade são as apostas dos mais esperançosos.
Se tomarmos um pouco da história do século XX como ensinamento, é possível observar que os momentos de maior calamidade foram cruciais para a renovação dos pactos humanos, para o bem e para o mal. O silenciar das armas no fim da I Grande Guerra – aquela que deveria ter sido a guerra para acabar com todas as guerras –, sob os auspícios do Tratado de Versalhes, foi apenas o prenúncio da escalada de violência que viria a seguir. Na sequência da II Guerra Mundial, no entanto, vimos que as marcas da destruição material e moral deixadas na superfície europeia e nos espíritos amputados pela brutalidade fizeram emergir um novo pacto civilizatório de tolerância às diferenças e proteção social no Velho Continente.
É verdade que ali estava uma Guerra Fria que, por sensatez das consciências ou por pura sorte, se manteve resfriada nos seus mais de 40 anos de duração. O principal ensinamento deixado pelos pactos civilizatórios do pós-guerra foi a ideia de que a reconstrução não deveria pautar-se na condenação dos “perdedores”, pois não há vencedores em uma luta fatricida. A vitória deveria ser a reconstrução de um tecido civilizatório pautado na inclusão, tolerância e proteção dos mais vulneráveis. Era a vitória da civilização sobre a barbárie.
Globalização e epidemia

Dizem que o desamparo do ser humano é viver em um tempo presente que não se compreende bem, à mercê de um futuro imprevisível e à sombra de um passado que está em permanente revisão.
Se os desafios do passado, no entanto, permitirem que aprendamos algo neste momento, é urgente e inevitável que olhemos com clareza e honestidade para a nossa civilização global: nossos valores, crenças, modos de produção, tecnologias, sistemas de compartilhamento e, sobretudo, nossas escolhas na vida pública nos últimos anos. Neste sentido, é curioso e importante notar que o surgimento da epidemia se dá exatamente no momento histórico em que os valores civilizatórios de coesão, proteção solidária e tolerância – aqueles estabelecidos no pós-guerra – enfrentavam as suas mais agudas críticas e ataques. A crítica feroz e a redução no financiamento dos sistemas públicos de saúde, a desigualdade brutal e crescente na distribuição de renda e acesso aos bens essenciais, a marginalização de populações vulneráveis e imigrantes como um “inimigo invasor”, nacionalismos exacerbados e anti-intelectualismo de várias ordens são apenas alguns exemplos. É exatamente neste momento histórico que o mundo dito civilizado do século XXI tem que parar e se dobrar aos efeitos pandémicos causados por um micro-organismo.
As nações mais ricas e desenvolvidas do planeta são as mais afetadas. Seus líderes, atónitos em busca de soluções, são obrigados a lançar recursos extras de emergência para os sistemas de saúde, amplas medidas de proteção social em prol da população que agora não deve mais buscar incansavelmente o rendimento para o consumo material; as pessoas devem permanecer em casa para a sobrevivência de todos. Os sistemas de saúde públicos e as universidades, até então criticadas por seu custo dispendioso, se tornam essenciais para a sobrevivência da espécie. As ciências (aí incluídas também as ciências socias e a teologia) parecem ser a nossa única esperança.
E o que dizer do inimigo a ser combatido, o tal vírus? Há quem acredite que o inimigo é apenas um ente biológico, uma anomalia de proteínas e material genético surgida na China que invadiu nossas cidades e casas, uma nova peste. Ao contrário do que alguns querem fazer crer, a epidemia não se dá apenas pelo aparecimento de um vírus – temos milhões de vírus circulando pelo planeta – mas, sim, pela força e velocidade de sua contaminação, que não respeita as fronteiras nacionais e continentais e, ainda, não permite o tempo necessário para que nos protejamos dele. O inimigo neste caso não tem um passaporte “ruim” ou uma insígnia discriminatória, ele não mostra claramente a sua cara, porque a sua cara é a nossa cara.

O vírus pertence ao mundo e a contaminação que ele produz é fruto das nossas escolhas e atitudes como um coletivo civilizatório. A produção massiva de bens de consumo que custam centavos e que são produzidos à custa do trabalho semi-escravo na China e no Oriente, a precarização das relações de trabalho para enriquecimento de poucos, a destruição sem precedentes dos recursos naturais, o sucateamento dos sistemas de saúde públicos e de proteção social, o rebaixamento das decisões políticas aos interesses imediatos de povos sedentos de “renovação”, a marginalização de milhões de migrantes, refugiados e populações vulneráveis como indesejáveis da globalização – essa tem sido a nossa trajetória nos ultimos anos, marcada profundamente por uma atitude individualista de consumo. O vírus é apenas mais um produto deste sistema.
A velocidade com que a covid-19 se alastrou pelo mundo é a mesma com que uma camisa de baixa qualidade produzida na China, por um funcionário que ganha um euro por dia, chega a uma loja de Londres. A epidemia de covid-19 é uma experiência de produção global em escala, velocidade e rota (do Oriente ao Ocidente). A verdadeira doença, portanto, não está na constituição do ente biológico e sim na fragilidade do nossos sistemas imunológicos e coletivos que não protegem os indivíduos do adoecimento e da des-assistência.
Um tempo de aprendizagem e reflexão
Ainda não se sabe o tempo que a pandemia vai perdurar entre nós e a que custo de vidas humanas, mas sabemos que este “choque de realidade” já nos impõe a urgência de refletir sobre nossas formas de existir e de se relacionar e, antes de tudo, na maneira como compreendemos nossa realidade. Entender o caminho feito, a riqueza daquilo que foi conquistado, os problemas que nos cercam e tomar decisões para seguir. Assim fazem os peregrinos e os navegantes, o mesmo deveria ser perseguido pelas sociedades.
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Talvez a primeira aprendizagem trazida pela epidemia seja o resgate da ciência como uma ferramenta de enfrentamento dos problemas da sociedade moderna. A construção de uma base de conhecimento científico é algo milenar, se considerarmos a história das civilizações antigas, e que atingiu um patamar avançado de progresso no último século. Ainda que pesem as limitações do paradigma científico clássico na era pós-moderna – nas palavras de Boaventura de Sousa Santos – o conhecimento científico de todas as ordens continua sendo um tesouro da humanidade, e deve ser reconhecido e prestigiado como ferramenta essencial da civilização.

Outro património civilizacional são os sistemas públicos de saúde como expressão maior da ética do cuidado integral aos indivíduos no momento de sua maior fragilidade, a experiência do adoecimento e da morte. A construção de sistemas de saúde pautados pelos princípios da universalidade de acesso para todos e pela integralidade da atenção em todos os níveis de cuidado é uma conquista civilizacional amalgamada no último século por algumas nações, considerando os diferentes desenhos institucionais e modelos de assistência.
Importante elemento a ser considerado neste momento de reflexão “forçada” se refere ao poder da informação e ao papel dos meios de comunicação. O grande volume de informação, não raro desencontrada ou com fontes duvidosas, propagada pelas redes sociais, nos coloca à mercê de equívocos graves de percepção da realidade. A ascensão de um sistema de compartilhamento mundial de informações criou um perigoso patamar simétrico de fontes de informações, onde a opinião simples de indivíduos ganha automaticamente um status de verdade e passa a influenciar outros, sem filtros de verificação ou validação.
Muitos intelectuais vêm debatendo o papel das redes sociais, considerando o efeito nocivo que a desinformação e manipulação das opiniões públicas podem gerar. Não se trata de negar a importância das tecnologias de comunicação, mas compreender que é talvez chegado o tempo de nós impormos nossos filtros pessoais para as informações que nos chegam incessantemente pelo Facebook, Twitter, Instagram e Whatsapp. Além disso, fica claro que os tradicionais meios de comunicação devem restaurar a sua legitimidade como fontes credíveis de informação, baseados nos princípios éticos e melhores práticas de jornalismo.
Um último, e talvez o mais importante legado desses tempos de crise é a importância do princípio de cooperação. Há um ditado popular encontrado em diversas culturas e idiomas que diz que sozinho se vai mais rápido, e juntos se chega mais longe. A necessidade de cooperação entre indivíduos e sociedades sempre foi um imperativo de sobrevivência, na sua dimensão individual privada (ao contrário de outras espécies, os nossos bebês não se tornam autónomos aos seis meses de vida) e também coletiva no âmbito das nossas sociedades nacionais e nos acordos de cooperação entre os povos. Se o fenómeno da globalização, pautada na satisfação dos desejos consumistas, revela a nossa face mais irracional de individualismo, a solução de problemas globais complexos exige pactos coletivos de cooperação e solidariedade.
Não há tempo a perder

As medidas de isolamento social e restrição de movimentos como forma de reduzir a velocidade de contaminação da epidemia é um claro exemplo neste sentido: evitar a circulação para não se contaminar e não contaminar o outro, como tentativa de preservação de um sistema de saúde que todos vamos precisar, por um motivo ou por outro.
Sair da esfera individual do que é melhor para si, mudando hábitos, e fazer sacrifícios em nome do coletivo é algo que infelizmente nos desacostumamos a fazer, e por isso a tarefa se torna difícil. O mesmo se aplicaria à cooperação entre nações, no compartilhamento solidário de informações, tecnologias e materiais de combate à epidemia. Em nada adianta, portanto, prover assistência a população de um território, se o mesmo não é oferecido ao vizinho; problemas globais exigem medidas globais de cooperação.
Em um universo em constante movimento, a estagnação já é um retrocesso. No momento em que escrevo estas linhas estou no Médio Oriente, precisamente no Líbano, apoiando a assistência humanitária às populações vítimas de conflitos armados, e também experimentando o isolamento social em uma cultura distinta da minha, durante um calendário particularmente especial. Entre os meses de Março e Abril deste ano, período em que a pandemia de covid-19 mostra sua face mais fatal, há uma coincidência (para quem acredita nela) das datas mais expressivas de diversas religiões e culturas: a Páscoa cristã (católica, protestante e ortodoxa), a Pessah judaica, o Ramadão dos muçulmanos e o Novruz dos povos de cultura persa. Essa sincronia de calendários religiosos milenares reforça ainda mais o convite à reflexão e à semeadura do novo. E o resultado da colheita civilizacional que teremos no futuro certamente dependerá da semeadura de reflexões e atitudes coletivas que estamos a fazer neste momento. É chegado o momento de transição, não há tempo a perder.
Marcello Roriz de Queiroz é psicólogo e especialista regional de saúde do Comité Internacional da Cruz Vermelha no Médio Oriente; as opiniões expressas neste texto são de caráter pessoal e não refletem necessariamente a posição da instituição a qual o autor faz parte.
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