Humanidade e civilização: o que a pandemia pode dizer de nós mesmos e do nosso futuro? (Ensaio)

| 27 Abr 20

Graça Morais, Série “Sombras do Medo”, 2012; Aguarela e acrílico sobre papel. Col. Graça Morais

 

O mundo tal qual o conhecemos parou por um momento. De uma maneira abrupta e inesperada, as engrenagens materiais e humanas precisaram de interromper a sua produção mecanizada e aparentemente incessante. Os humanos se recolheram e tudo aquilo que girava em torno do seu movimento também foi obrigado a parar. Os produtos não têm clientes, os aviões estão estacionados, carros e comboios também não têm mais as pessoas inquietas a se movimentar pela superfície de um espaço terrestre, um tanto desgastado e aquecido. As cidades não têm visitantes e Nova Iorque finalmente adormeceu assustada. Diante do momento histórico em que vivemos, nos perguntamos o que essa epidemia tem a nos dizer daquilo que somos como civilização e o que nos espera em um futuro próximo?

Dizem alguns que o mundo como o conhecemos até então não será mais o mesmo e que a vida não voltará à nomalidade, não ao menos para aquela normalidade. Neste crepúsculo de uma velha civilização moderna, vislumbramos alguns cenários possíveis. Os mais pessimistas apontam para crises económicas, escassez de produtos e empobrecimento generalizado como uma consequência direta da epidemia. Por outro lado, movimentos de uma regeneração humana e uma nova consciência social e política pautada na solidariedade são as apostas dos mais esperançosos.

Se tomarmos um pouco da história do século XX como ensinamento, é possível observar que os momentos de maior calamidade foram cruciais para a renovação dos pactos humanos, para o bem e para o mal. O silenciar das armas no fim da I Grande Guerra – aquela que deveria ter sido a guerra para acabar com todas as guerras –, sob os auspícios do Tratado de Versalhes, foi apenas o prenúncio da escalada de violência que viria a seguir. Na sequência da II Guerra Mundial, no entanto, vimos que as marcas da destruição material e moral deixadas na superfície europeia e nos espíritos amputados pela brutalidade fizeram emergir um novo pacto civilizatório de tolerância às diferenças e proteção social no Velho Continente.

É verdade que ali estava uma Guerra Fria que, por sensatez das consciências ou por pura sorte, se manteve resfriada nos seus mais de 40 anos de duração. O principal ensinamento deixado pelos pactos civilizatórios do pós-guerra foi a ideia de que a reconstrução não deveria pautar-se na condenação dos “perdedores”, pois não há vencedores em uma luta fatricida. A vitória deveria ser a reconstrução de um tecido civilizatório pautado na inclusão, tolerância e proteção dos mais vulneráveis. Era a vitória da civilização sobre a barbárie.

 

Globalização e epidemia

Escultura de ex-votos. Foto Bruna da Silva Rodrigues/Wikimedia Commons

 

Dizem que o desamparo do ser humano é viver em um tempo presente que não se compreende bem, à mercê de um futuro imprevisível e à sombra de um passado que está em permanente revisão.

Se os desafios do passado, no entanto, permitirem que aprendamos algo neste momento, é urgente e inevitável que olhemos com clareza e honestidade para a nossa civilização global: nossos valores, crenças, modos de produção, tecnologias, sistemas de compartilhamento e, sobretudo, nossas escolhas na vida pública nos últimos anos. Neste sentido, é curioso e importante notar que o surgimento da epidemia se dá exatamente no momento histórico em que os valores civilizatórios de coesão, proteção solidária e tolerância – aqueles estabelecidos no pós-guerra – enfrentavam as suas mais agudas críticas e ataques. A crítica feroz e a redução no financiamento dos sistemas públicos de saúde, a desigualdade brutal e crescente na distribuição de renda e acesso aos bens essenciais, a marginalização de populações vulneráveis e imigrantes como um “inimigo invasor”, nacionalismos exacerbados e anti-intelectualismo de várias ordens são apenas alguns exemplos. É exatamente neste momento histórico que o mundo dito civilizado do século XXI tem que parar e se dobrar aos efeitos pandémicos causados por um micro-organismo.

As nações mais ricas e desenvolvidas do planeta são as mais afetadas. Seus líderes, atónitos em busca de soluções, são obrigados a lançar recursos extras de emergência para os sistemas de saúde, amplas medidas de proteção social em prol da população que agora não deve mais buscar incansavelmente o rendimento para o consumo material; as pessoas devem permanecer em casa para a sobrevivência de todos. Os sistemas de saúde públicos e as universidades, até então criticadas por seu custo dispendioso, se tornam essenciais para a sobrevivência da espécie. As ciências (aí incluídas também as ciências socias e a teologia) parecem ser a nossa única esperança.

E o que dizer do inimigo a ser combatido, o tal vírus? Há quem acredite que o inimigo é apenas um ente biológico, uma anomalia de proteínas e material genético surgida na China que invadiu nossas cidades e casas, uma nova peste. Ao contrário do que alguns querem fazer crer, a epidemia não se dá apenas pelo aparecimento de um vírus – temos milhões de vírus circulando pelo planeta – mas, sim, pela força e velocidade de sua contaminação, que não respeita as fronteiras nacionais e continentais e, ainda, não permite o tempo necessário para que nos protejamos dele. O inimigo neste caso não tem um passaporte “ruim” ou uma insígnia discriminatória, ele não mostra claramente a sua cara, porque a sua cara é a nossa cara.

Obra de Enrique Mirones, monge do mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza. Foto © Paulo Bateira, cedida pelo autor

 

O vírus pertence ao mundo e a contaminação que ele produz é fruto das nossas escolhas e atitudes como um coletivo civilizatório. A produção massiva de bens de consumo que custam centavos e que são produzidos à custa do trabalho semi-escravo na China e no Oriente, a precarização das relações de trabalho para enriquecimento de poucos, a destruição sem precedentes dos recursos naturais, o sucateamento dos sistemas de saúde públicos e de proteção social, o rebaixamento das decisões políticas aos interesses imediatos de povos sedentos de “renovação”, a marginalização de milhões de migrantes, refugiados e populações vulneráveis como indesejáveis da globalização – essa tem sido a nossa trajetória nos ultimos anos, marcada profundamente por uma atitude individualista de consumo. O vírus é apenas mais um produto deste sistema.

A velocidade com que a covid-19 se alastrou pelo mundo é a mesma com que uma camisa de baixa qualidade produzida na China, por um funcionário que ganha um euro por dia, chega a uma loja de Londres. A epidemia de covid-19 é uma experiência de produção global em escala, velocidade e rota (do Oriente ao Ocidente). A verdadeira doença, portanto, não está na constituição do ente biológico e sim na fragilidade do nossos sistemas imunológicos e coletivos que não protegem os indivíduos do adoecimento e da des-assistência.

 

Um tempo de aprendizagem e reflexão

Ainda não se sabe o tempo que a pandemia vai perdurar entre nós e a que custo de vidas humanas, mas sabemos que este “choque de realidade” já nos impõe a urgência de refletir sobre nossas formas de existir e de se relacionar e, antes de tudo, na maneira como compreendemos nossa realidade. Entender o caminho feito, a riqueza daquilo que foi conquistado, os problemas que nos cercam e tomar decisões para seguir. Assim fazem os peregrinos e os navegantes, o mesmo deveria ser perseguido pelas sociedades.

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Talvez a primeira aprendizagem trazida pela epidemia seja o resgate da ciência como uma ferramenta de enfrentamento dos problemas da sociedade moderna. A construção de uma base de conhecimento científico é algo milenar, se considerarmos a história das civilizações antigas, e que atingiu um patamar avançado de progresso no último século. Ainda que pesem as limitações do paradigma científico clássico na era pós-moderna – nas palavras de Boaventura de Sousa Santos – o conhecimento científico de todas as ordens continua sendo um tesouro da humanidade, e deve ser reconhecido e prestigiado como ferramenta essencial da civilização.

Obra de Enrique Mirones, monge do mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza. Foto © Paulo Bateira, cedida pelo autor

 

Outro património civilizacional são os sistemas públicos de saúde como expressão maior da ética do cuidado integral aos indivíduos no momento de sua maior fragilidade, a experiência do adoecimento e da morte. A construção de sistemas de saúde pautados pelos princípios da universalidade de acesso para todos e pela integralidade da atenção em todos os níveis de cuidado é uma conquista civilizacional amalgamada no último século por algumas nações, considerando os diferentes desenhos institucionais e modelos de assistência.

Importante elemento a ser considerado neste momento de reflexão “forçada” se refere ao poder da informação e ao papel dos meios de comunicação. O grande volume de informação, não raro desencontrada ou com fontes duvidosas, propagada pelas redes sociais, nos coloca à mercê de equívocos graves de percepção da realidade. A ascensão de um sistema de compartilhamento mundial de informações criou um perigoso patamar simétrico de fontes de informações, onde a opinião simples de indivíduos ganha automaticamente um status de verdade e passa a influenciar outros, sem filtros de verificação ou validação.

Muitos intelectuais vêm debatendo o papel das redes sociais, considerando o efeito nocivo que a desinformação e manipulação das opiniões públicas podem gerar. Não se trata de negar a importância das tecnologias de comunicação, mas compreender que é talvez chegado o tempo de nós impormos nossos filtros pessoais para as informações que nos chegam incessantemente pelo Facebook, Twitter, Instagram e Whatsapp. Além disso, fica claro que os tradicionais meios de comunicação devem restaurar a sua legitimidade como fontes credíveis de informação, baseados nos princípios éticos e melhores práticas de jornalismo.

Um último, e talvez o mais importante legado desses tempos de crise é a importância do princípio de cooperação. Há um ditado popular encontrado em diversas culturas e idiomas que diz que sozinho se vai mais rápido, e juntos se chega mais longe. A necessidade de cooperação entre indivíduos e sociedades sempre foi um imperativo de sobrevivência, na sua dimensão individual privada (ao contrário de outras espécies, os nossos bebês não se tornam autónomos aos seis meses de vida) e também coletiva no âmbito das nossas sociedades nacionais e nos acordos de cooperação entre os povos. Se o fenómeno da globalização, pautada na satisfação dos desejos consumistas, revela a nossa face mais irracional de individualismo, a solução de problemas globais complexos exige pactos coletivos de cooperação e solidariedade.

 

Não há tempo a perder

Obra de Enrique Mirones, monge do mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza. Foto © Paulo Bateira, cedida pelo autor

 

As medidas de isolamento social e restrição de movimentos como forma de reduzir a velocidade de contaminação da epidemia é um claro exemplo neste sentido: evitar a circulação para não se contaminar e não contaminar o outro, como tentativa de preservação de um sistema de saúde que todos vamos precisar, por um motivo ou por outro.

Sair da esfera individual do que é melhor para si, mudando hábitos, e fazer sacrifícios em nome do coletivo é algo que infelizmente nos desacostumamos a fazer, e por isso a tarefa se torna difícil. O mesmo se aplicaria à cooperação entre nações, no compartilhamento solidário de informações, tecnologias e materiais de combate à epidemia. Em nada adianta, portanto, prover assistência a população de um território, se o mesmo não é oferecido ao vizinho; problemas globais exigem medidas globais de cooperação.

Em um universo em constante movimento, a estagnação já é um retrocesso. No momento em que escrevo estas linhas estou no Médio Oriente, precisamente no Líbano, apoiando a assistência humanitária às populações vítimas de conflitos armados, e também experimentando o isolamento social em uma cultura distinta da minha, durante um calendário particularmente especial. Entre os meses de Março e Abril deste ano, período em que a pandemia de covid-19 mostra sua face mais fatal, há uma coincidência (para quem acredita nela) das datas mais expressivas de diversas religiões e culturas: a Páscoa cristã (católica, protestante e ortodoxa), a Pessah judaica, o Ramadão dos muçulmanos e o Novruz dos povos de cultura persa. Essa sincronia de calendários religiosos milenares reforça ainda mais o convite à reflexão e à semeadura do novo. E o resultado da colheita civilizacional que teremos no futuro certamente dependerá da semeadura de reflexões e atitudes coletivas que estamos a fazer neste momento. É chegado o momento de transição, não há tempo a perder.

 

Marcello Roriz de Queiroz é psicólogo e especialista regional de saúde do Comité Internacional da Cruz Vermelha no Médio Oriente; as opiniões expressas neste texto são de caráter pessoal e não refletem necessariamente a posição da instituição a qual o autor faz parte.
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