
“O Humano não é apenas uma consciência, mas uma consciência que se sabe.” Foto © Mauro Mora | Unslash
Neste artigo procurarei enunciar algumas ideias muito gerais acerca do que considero ser necessário para a humanização do Humano do ponto de vista da educação integral. Ou seja, para essa tarefa sempre inacabada de elevar o Humano à sua verdadeira dignidade, na liberdade e pela liberdade.
A tarefa de gisar um projeto de humanização requer, como não poderia deixar de ser, uma ideia prévia acerca do que significa ser Humano. Assim, direi em três traços muito gerais o seguinte. Ser Humano é:
– Ser que aspira a realizar-se no dever-ser. Isto quer dizer que o ser humano é um ser moral: nunca se contenta com o que é, mas aspira sempre a uma norma mais alta – quer dizer, mais justa, mais verdadeira – à qual possa adequar-se. Ainda que por vezes adote um ceticismo vicioso ou niilista, fá-lo sempre contra determinadas normas e valores que considera caducos ou alienantes, por respeito a normas e valores mais altos, mesmo que não claramente explicitados.
– Ser consciente de que é consciente. Quer dizer, o Humano não é apenas uma consciência, mas uma consciência que se sabe, facto que faz toda a diferença na ordem ontológica que fundamenta a sua dignidade universal. Daqui decorre o seguinte: O Humano é ser que se sabe, mas que ao mesmo tempo se desconhece infinitamente. Daí que seja ser de dúvida, incerteza e inquietação, levado sempre a procurar e a procurar-se. É ser-para-o-sentido, ou seja, toda a sua existência é um esforço para encontrar o seu lugar e o seu propósito no contexto do Infinito sem nome dentro e fora de si.
– Ser que não é, mas que se torna. Há um imútavel dentro dele, um absoluto sem extensão, um infinito que é alma, que o chama continuamente a uma vida mais livre e autêntica, a ser pensamento e sentimento em ação cada vez mais consequente e responsável. O desejo de expressão pura, por palavras e gestos, é uma das mais profundas aspirações do ser humano, e condição essencial à descoberta de um sentido para a vida.
– Arrisco-me também a dizer o seguinte: ser Humano não é cultura versus natureza, ou humano versus natureza; ou seja, longe de ser uma realidade separada de tudo o resto, ou até mesmo insignificante, ou acidental, ou supérflua, como muitos defendem, o ser humano é antes a expressão mais alta e acabada da própria natureza. Pelo menos do ponto de vista do cérebro biológico e do aparato psicológico, que é, tanto quanto sabemos, único. (Excluo nestas afirmações, como é óbvio, a eventualidade, altamente provável, de existirem extraterrestres mais evoluídos, o que em si todavia não retira estatuto ontológico ao Homem em termos absolutos). Além disso, o facto de ser dotado de consciência, e mais ainda de consciência da consciência, faz dele ontologicamente superior à matéria bruta (se é que tal existe) e, acredito, vizinho ou semelhante da mais alta forma de Ser, que não será senão Consciência em grau infinito (Deus).

Dito isto, apresentarei agora algumas medidas gerais que visem a humanização do Humano no enquadramento do horizonte antropológico que acabei de gisar. Elas são medidas sobretudo educativas no sentido mais integral da palavra educação, que devem comprometer não apenas a escola ou a universidade, mas a sociedade toda, como um desígnio comum de tomada de consciência do Humano por si próprio.
Em primeiro lugar, se o Humano é um ser moral, ele tem de ser educado para a liberdade com base em referências morais ou axiológicas explícitas, isto é, princípios e valores. Menos com discursos e mais, muito mais, com exemplos e exemplaridade. Desde logo a partir do legado dos grandes mestres da humanidade de todos os tempos: filósofos, mestres espirituais, políticos, ativistas, escritores, cientistas, etc. Idealmente, a própria escola deve encarnar esses princípios e valores, e a sociedade deve, pelo menos, evitar desmenti-los. Pois ao fazê-lo está a desacreditá-los e a torpedear à partida qualquer projeto de humanização. Que é o que infelizmente acontece, como expõe magnificamente Amin Malouf em O Naufrágio das Civilizações:
“Como demonstrar que, num tempo em que o enriquecimento ultrajante fascina e faz sonhar, é inevitável que a corrupção se propague entre as classes dirigentes e em toda a sociedade? Que quando o egoísmo dos indivíduos e clãs é justificado, legitimado ou mesmo considerado como instrumento da Providência, os laços de solidariedade entre os diferentes componentes da população enfraquecem? Que quando os «ricos e famosos», ainda que desonestos, são apontados como exemplo a seguir, é toda a escala de valores que é desacreditada?”
E ainda,
“Serão necessárias longas demonstrações para compreender que um bairro onde os traficantes são mais admirados do que os professores se torna um viveiro de desagregação social? E quando toda a sociedade tem um estado de espírito semelhante, quando as atividades financeiramente lucrativas são mais valorizadas do que aquelas socialmente úteis, as consequências devastadoras são impossíveis de controlar. Todos os comportamentos dos cidadãos são afetados…”

De facto, os valores da honestidade e da verdade em tudo, da solidariedade e da participação cívica, bem como as virtudes da coragem, do esforço pessoal, da civilidade, da criatividade, da expressão autêntica, do conhecimento e de uma autêntica espiritualidade, não podem jamais enraizar-se numa sociedade que, na prática, se rege pelos valores e virtudes contrárias. São eles a competição desenfreada, o sucesso e/ou a popularidade a qualquer custo, a fortuna material, o tribalismo local ou nacional, a sobreposição do financeiro ao político e/ou ético, o hedonismo, a conveniência egoísta, a exterioridade/aparência, etc. A este propósito, diz o meu antigo Professor de Filosofia Antiga na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o excelente Dr. José Caiado Ribeiro Graça, cujo contributo para este artigo volto a agradecer, agora publicamente, que
“Num tempo em que as mentes foram capturadas por uma manhosa teoria da meritocracia (leia-se A Tirania do Mérito de Michael Sandel), pelo sucesso custe o que custar, pelo dinheiro a qualquer preço, era urgente a emergência de uma ética da responsabilidade, de uma ética das convicções, de uma persistência de carácter. Ao contrário, assiste-se à insistência num canibalismo verbal e mental que subverte e vandaliza.”
E referindo-se ainda à importância de cultivarmos cada vez mais um amor concreto pelos seres humanos concretos, em detrimento de um humanismo meramente retórico e abstrato, cita Camus: “«Já não existem paixões individuais possíveis, mas apenas paixões colectivas, ou seja, abstractas, frias até à secura»”.
É evidente, por conseguinte, que a educação, reabilitada na sua dimensão ética integral, tem de assumir para si esta missão de moralização do Humano, em liberdade e para a liberdade autêntica. Sem descurar nenhum aspeto da sua humanidade, inclusive aquela que é tantas vezes desprezada e mal compreendida, como seja a espiritual.
Mas é claro que a escola não pode tudo! Nem a humanização do Humano é um processo que possa terminar com diploma. Cada pessoa, cada setor da sociedade, cada instituição, cada empresa, cada orgão de comunicação social, cada orgão de soberania, deve assumir a sua quota de responsabilidade neste processo, sobretudo se a sua influência pública for grande. Porque nada daquilo que se diz ou faz é isento de consequências éticas; tudo é educação, seja formal ou informal, e tanto mais quanto maior a influência pública do agente em questão (maior a liberdade ou o poder, maior a responsabilidade – devia ser assim). Muito menos hoje, num mundo tão interligado e interdependente, onde a informação e a desinformação chegam a todo o lado, a toda a hora, quase instantaneamente. A par da Constituição jurídico-política, é preciso uma espécie de constituição do espírito, que congregue a sociedade em torno de princípios e valores fundamentais baseados numa visão antropológica comum, que tenha em conta o que de melhor sabemos acerca do Humano em todas as suas dimensões, para que um espírito renovado de Verdade e verdadeiro respeito pela dignidade humana possa influir em todos os domínios da vida coletiva.

Em segundo lugar, é necessário educar para a Pergunta. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que é preciso que cada ser humano, em algum momento da sua vida, venha a reconhecer, com assombro, que existe, e que é para si próprio um Problema e um Mistério a resolver. Esta é condição indispensável à consciência de si, à problematização que conduz à profundidade e à expansão da personalidade, ligada necessariamente às outras grandes questões do Ser e da Vida. Só esta consciência de si, que é consciência do mistério de uma existência para si própria, pode lançar o indivíduo, autenticamente, na aventura da sua busca pessoal pelo sentido. As grandes questões, mais do que as respostas prontas, serão o motor da sua humanização. Cada indivíduo deve assumi-las como suas, senti-las como problemas seus, porque a sua existência e o seu sentido estão nelas implicadas (é evidente aqui o papel predominante da disciplina de Filosofia, mas não só). Além do mais, só esta tomada de consciência própria, elevada à condição de um questionar radical, o pode fazer compreender ao mesmo tempo o infinito da sua própria ignorância, condição necessária à humildade, logo à humanidade (ambas as palavras têm a mesma raíz etimológica de húmus, terra). Não à humildade da resignação, mas à da transformação. A humildade do caminho a fazer para a descoberta e realização de si, solitária mas solidariamente com o Todo.
Em terceiro lugar, é necessário educar para a Inteligência. Por inteligência entendo aqui quer o discernimento intelectual, quer o moral. Saber distinguir o verdadeiro do falso, o certo do errado, sem esquecer os matizes intermédios do provável ou do improvável, do verosímil, e até do “menos errado”, dependendo das circunstâncias. Este discernimento, que está inevitavelmente ligado à “conquista da consciência pela consciência” de que tenho estado a falar, é essencial para que o indivíduo saiba encontrar algumas certezas ou convicções na sua curta existência terrena. Mas é mais importante ainda para que saiba fazer face ao peso da incerteza, que, de muitas maneiras, conduz à angústia e ao desespero, e daí aos falsos ídolos de todas as espécies: políticos, religiosos, (pseudo)científicos, materiais, hedonistas, etc. É que, sem esperança, a humanidade desumaniza-se.
Em quarto lugar, é necessário educar para a Autonomia do Pensamento e da Expressão. De facto, e como já anteriormente referi, é na expressão autêntica, em palavras e em gestos, que o sentido humano se revela, porque se trata da liberdade em pleno exercício. Tal como diz Erich Fromm em O Medo da Liberdade, “não há nada que nos dê mais orgulho e felicidade do que pensar, sentir e dizer o que nos é próprio”. Mas isso exige uma educação para a espontaneidade, isto é, para a capacidade efetiva de pensar e decidir autonomamente, superando a tendência muito humana para o conformismo. Porque, de facto, ainda nas palavras do psicanalista e filósofo alemão, “Muitas das nossas decisões não são realmente nossas, são-nos sugeridas do exterior; convencemo-nos a nós mesmos de que somos nós quem toma as decisões, quando, na verdade, nos conformamos com as expectativas dos outros, movidos pelo medo do isolamento e por ameaças mais directas à nossa vida, à nossa liberdade e ao nosso conforto.”

É essencial ainda referir neste ponto que não existe verdadeira expressão ou liberdade sem interioridade. Ou seja, é essencial educar para o culto da interioridade, em detrimento da preponderância esmagadora que a exterioridade e a aparência têm na sociedade atual. De facto, diz Pe. Manuel Antunes, “Neste mundo, que cada vez mais se exterioriza, tem de haver um contrapeso de interioridade para o equilibrar”.
Ora, temos de reaprender a importância absolutamente central do silêncio, da reflexão, da meditação e da oração. O ser Humano é uma consciência, e uma consciência é necessariamente interioridade. Se queremos ser mais do que fachadas sem substância, autómatos sempre dependentes do estímulo ou da interpelação da hora, temos de cultivar a nossa interioridade, retornar a ela, descobrir nela e por ela a palavra que nos estrutura, o bem que nos pacifica, a beleza-verdade que somos chamados a exprimir. Os excessivos estímulos externos, o ruído, o culto do perfil público e da aparência, a tagarelice, conduzem progressivamente a um esvaziamento interior que é inimigo do pensamento, da criatividade, da integração saudável de uma personalidade – e que necessariamente conduz à angústia e à depressão, patologia endémica dos nossos tempos. Porque o Homem não é apenas ser de logos (i.e. palavra), mas também de metalogos (i.e. do que está para além da palavra; do inominado ou inefável). Ele tem de estar disponível a essa dimensão; tem de aprender a escutar essa realidade intangível e irredutível ao pensamento, mas que lhe é mais íntima de si próprio do que ele mesmo. Segundo Goethe, este é o mais alto estado que a consciência pode alcançar; e já antes dele o disseram todos os grandes místicos, do Oriente ao Ocidente. Porque somos seres-para-a-Transcendência, e não apenas de imanência. Aliás, nós somos “transcendência encarnada”, precisamente porque somos interioridade num mundo que, alegadamente, é todo ele matéria bruta e objectividade física sem “dentro”. Sublinho o alegadamente.
Aqui fica este breve esboço, evidentemente muito incompleto, mas que em síntese afirma a importância da educação 1) para um quadro explícito de princípios e valores, 2) para a Pergunta que é hábito de interrogação radical de si próprio e do mundo, 3) para a Inteligência ou Discernimento, intelectual e moral, 4) para a Autonomia do Pensamento e da Expressão. Em todos os casos, tendo em vista uma ideia de Humano como ser moral, consciente – e, mais importante ainda, consciente de que é consciente –, e ontologicamente digno e com vocação para o Sentido.
Ruben Azevedo é professor e membro do Ginásio de Educação Da Vinci – Campo de Ourique (Lisboa).