
O Papa Francisco faz o convite a que a Igreja deixe a ilusão do centro e assuma as margens como seu lugar natural. Foto © Vatican media.
O cristianismo nasceu nas margens. Jesus viveu e afirmou-se nas margens tanto do judaísmo, a que pertencia, como do Império Romano, a que se encontrava sujeito. Sabemos como esse caso evoluiu: acabou condenado à morte, tanto pelo judaísmo como pelo Império.
Após o fenómeno vivido pelos seus discípulos como a Ressurreição, o cristianismo inicia o seu percurso também nas margens, mais uma vez tanto do judaísmo, de que se foi distanciando, como do Império que o combateu. Pouco a pouco, o cristianismo dos primeiros tempos foi-se autonomizando do judaísmo e foi-se disseminando pelo Império e ganhando força social.
No século IV, o ainda jovem cristianismo, de religião perseguida torna-se a religião oficial do Império Romano. Ou seja, de religião oriunda das margens torna-se a religião do centro. Com essa operação, o cristianismo tem, necessariamente, de mudar de natureza: de religião crítica e de certo modo de oposição ao Poder instalado, torna-se religião sustentáculo desse Poder. De uma religião que propõe uma alternativa ao mundo instalado, torna-se garantia do mundo instalado e dos poderes que o regem. A Igreja torna-se, então e aí, um dos poderes que dão forma ao mundo instituído. A cristandade era a forma desse mundo.
A Idade Média é o tempo em que o Cristianismo é a forma da sociedade europeia, embora isso não signifique que todas as dimensões sociais sejam conformes à ordem que a Igreja proclama. O que é indiscutível é que a Igreja Católica está no centro ou é o próprio centro do Poder. Isso tem as suas exigências, nomeadamente a de não ser uma religião das margens. Quem melhor o percebeu foi o Grande Inquisidor, que explicou a Jesus Cristo, em Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, que Ele não percebia bem as exigências de ser Poder.
Com o Renascimento iniciou-se no Ocidente um longo processo de secularização, isto é, de organizar a ordem social, logo o Poder, sobre princípios que não derivam directamente da Igreja Católica. Sabemos igualmente que, com Lutero, se iniciou um processo em que o cristianismo se fractura e, a partir de então, passa a enviar normativos diversos de ordem social. Em síntese, talvez demasiado rápida, a Reforma aponta para uma ordem social mais urbana, civil e democrática; a Contrarreforma prefere uma ordem social rural e conventual, centralizadora e em conflito com a modernidade. O conflito com Galileu, primeiro, e depois com Darwin, são apenas dois exemplos, talvez os mais visíveis, dessa contenda.
Pouco a pouco, a ordem social foi-se constituindo, não a partir do poder religioso, mas do poder civil, secular e independente das várias religiões. As igrejas cristãs deixaram de ser igrejas do centro para se tornarem igrejas próximas do centro, mantendo sobre este um forte poder de influência, por vezes desejada por ele, por vezes mantida à distância, por vezes rejeitada. O comunismo ateu e militante é a expressão máxima do distanciamento activo. O indiferentismo agnóstico é a expressão máxima duma distância passiva.
Apesar de rejeitada ou expulsa do centro do Poder, a Igreja Católica manteve a ilusão do centro e o desejo de recuperar o lugar perdido. A cristandade continuou a ser a grande matriz do seu pensamento, embora não já do seu poder efectivo. O clericalismo centralizador é a manifestação na Igreja Católica da estrutura do seu pensamento social e político.
É com o surgimento das encíclicas da Doutrina Social da Igreja que começam a surgir rupturas na ilusão do centro. A Igreja já não se reconhece na ordem social vigente. É com o Vaticano II que a Igreja revê o seu pensamento sobre o mundo e repensa o seu lugar no mundo.
O Papa Francisco vem abrir um novo capítulo nesta caminhada: faz o convite a que a Igreja deixe a ilusão do centro e assuma as margens como seu lugar natural. As margens a que, de modo manifesto, na globalidade ela não quer pertencer. Por que razão havia de querer, se estar no centro foi aquilo que quase “sempre” quis?
Uma radiografia rápida tinha, por natureza, de esquecer partes significativas do percurso. Por exemplo, os caminhos apontados por Francisco de Assis. Ou por Teresa de Calcutá. E são apenas dois exemplos entre muitos outros. Caminhos pelas margens, importantes, de regresso às margens, mas que não foram fortes o suficiente para levarem consigo o grosso dos caminhantes.
Agora, Francisco (outro Francisco, ou o mesmo noutro tempo?) convida e desafia a maioria para uma saída em direcção às margens. Deixar o centro, com tudo o que isso implica. Não admira que a maioria resista. Como sempre tem resistido às margens. Estar no centro é isso mesmo, resistir às margens, é não pertencer às margens. Não parece possível estar nas margens com os mesmos hábitos, as mesmas regras, os mesmos ideais, as mesmas formas de poder que alimentam o estar no centro. Não admira que o conflito esteja instalado na Igreja. Como poderia ser de outro modo?
José Alves Jana é doutorado em filosofia, professor aposentado, voluntário e dirigente associativo. Contacto: jalvesjana@gmail.com