
Apresentação do relatório na Fundação Gulbenkian: “A Comissão vai mais longe: “a uma cultura de reconhecimento inequívoco da existência de abusos sexuais de crianças no interior da Igreja Católica portuguesa, só pode corresponder uma atitude e uma prática que recusem a ocultação ou o encobrimento dos factos. Foto © Clara Raimundo
“E agora?”, esta é a grande pergunta desde que foi apresentado o Relatório Final (RF) da Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa.
No Relatório são feitas várias recomendações (cfr. RF, p. 447-460): a Igreja dirigir às vítimas um “pedido de perdão” e assegurar-lhes apoio psicológico ou psiquiátrico; criar uma nova comissão pluridisciplinar, com maioria de membros externos à Igreja, para continuar a receber as denúncias de abusos; garantir o seguimento em psiquiatria dos alegados abusadores; e alargar o prazo de prescrição destes crimes, até a alegada vítima ter 30 anos de idade. O Relatório também afirma que, dada a natureza pública dos crimes sexuais contra crianças, impende sobre a Igreja o dever moral e cívico de os participar ao Ministério Público, independentemente dos seus procedimentos internos (cfr. RF, p. 450).
A Comissão vai mais longe: “a uma cultura de reconhecimento inequívoco da existência de abusos sexuais de crianças no interior da Igreja Católica portuguesa, só pode corresponder uma atitude e uma prática que recusem a ocultação ou o encobrimento dos factos (…). Do mesmo modo, não pode deixar de ser recomendada a recusa definitiva de um movimento de negação da ocultação anterior que, a subsistir, transformaria, a partir daqui, os «problemas» detetados «no» seio da Igreja em problemas estruturais, afinal, próprios «da» Igreja” (cfr. RF, p. 454-455).
Faltam as palavras para agradecer a coragem das pessoas que se disponibilizaram a expor-se perante a Comissão, dando testemunho como vítimas de abuso sexual em criança na Igreja Católica portuguesa. Uma mensagem de apreço aos membros da Comissão pelo seu trabalho extraordinário e pelo precioso contributo que deram ao revelar “a ponta de vários icebergs” (cfr. RF, p. 447). Uma última palavra para a Conferência Episcopal Portuguesa, por finalmente ter acedido a criar esta Comissão Independente.
Os abusos testemunhados à Comissão referem-se ao período 1950-2022 e a Igreja não pode ignorar que, em 77% dos casos, os alegados agressores eram padres no momento em que ocorreram os abusos. Se a estes adicionarmos religiosos(as) e seminaristas, o valor sobe para 85,8% (cfr. RF, p. 203-204).
Outros dados, menos sublinhados, indicam que do total de casos registados de “primeiro abuso” sexual a criança, 11,6% tiveram lugar já neste século XXI (2001-2022). Na verdade, mais de 56 testemunhos respeitam aos últimos 22 anos e 25 referem-se a crianças que já nasceram entre 2001 e 2016 (cfr. RF, p. 9-12). Pior, estes números estão longe de retratar a realidade atual, visto que a Comissão estima que a esmagadora maioria das crianças só revela o abuso, em média, mais de 10 anos depois dos factos (cfr. RF, p. 175). Em suma, a dura realidade é que o abuso sexual a crianças na Igreja Católica portuguesa não é apenas uma mácula do passado, é também uma realidade negra do presente. Acresce que, segundo a Comissão, “muitas” das pessoas referenciadas como abusadoras estão ainda hoje em atividade eclesiástica na Igreja Católica portuguesa (cfr. RF, p. 447).
Voltemos, então, à pergunta: e agora?
“Chegou finalmente a hora de “tirar a cabeça da areia”, parar e fazer silêncio interior para que o Espírito Santo tenha a oportunidade de fazer o seu papel de iluminar o caminho.” Foto © DR
Se a opção for manter ou simplesmente maquilhar os procedimentos do passado, a realidade não se alterará. Sem dúvida, é indispensável implementar as recomendações da Comissão para atender ao sofrimento das vítimas e sancionar abusos passados, mas isso não será suficiente para atacar as causas do problema, que estão para lá das competências da Comissão. É importante começar por reconhecer que a situação a que chegámos tem raízes profundas na vida e na estrutura da Igreja Católica, está cristalizada pelo tempo e não se circunscreve às fronteiras nacionais. Estes problemas perduram na Igreja independentemente das geografias e dos contextos socio-económicos, políticos, culturais, familiares e religiosos. E é insustentável!
É necessária uma verdadeira “pedrada no charco”!
Chegou finalmente a hora de “tirar a cabeça da areia”, parar e fazer silêncio interior para que o Espírito Santo tenha a oportunidade de fazer o seu papel de iluminar o caminho. Aproveitar para ver a realidade (esta e todas as outras) de forma objectiva, com humildade e verdade, recusando os filtros de leitura que têm contribuído para a desfocar e distorcer.
Depois, importa julgar a Igreja que somos, sem pré-conceitos, num exercício que dê verdadeiramente voz ao povo de Deus – e não sempre aos mesmos. No seguimento do Concílio Vaticano II, o Papa Francisco tem dado um novo impulso a uma ampla dinâmica de participação, aberta a todos, propondo um caminho sinodal. Esta participação alargada e diversificada devia marcar o dia a dia da vida da Igreja, e ainda mais em momentos como este. Uma participação que deve ser verdadeiramente comunitária, aberta e inclusiva das periferias, de fora para dentro.
Este caminho participado só será frutuoso e revitalizador se feito com o coração aberto para compreender os outros e estar disponível para acolher leituras e sugestões distintas, ouvir críticas e até opiniões controversas. Passa, ainda, por a Igreja criar mecanismos concretos para o exercício, há muito adiado, de uma verdadeira e total corresponsabilidade, através da participação efetiva dos leigos nas tomadas de decisão sobre a vida e o governo da Igreja, bem como sobre as suas opções pastorais.
Só um movimento de abertura à participação e uma atitude de disponibilidade para a acolher permitirá que a Igreja Católica, em comunidade, e à luz do Evangelho e da mensagem original de Jesus Cristo, proceda ao discernimento que conduza, finalmente, à reforma profunda de que tanto precisa para tocar o coração das pessoas.
Aproveitemos a extraordinária oportunidade do caminho que estamos a percorrer com o Papa Francisco, no âmbito do Sínodo “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, para dar passos concretos, visíveis aos olhos de todos, que façam a diferença na vida das pessoas e nos seus diversificados caminhos com Cristo.
A Igreja Católica portuguesa tem, e agora ainda mais, o dever de dar um contributo para a reforma necessária, levando ao Sínodo, com clareza e verdade, as principais preocupações dos católicos portugueses que a própria Conferência Episcopal Portuguesa resumiu no Relatório de Portugal ao Sínodo 2021-2023 (cfr. Relatório de Portugal ao Sínodo 2021-2023).
Agora, é tempo de agir, assim a Igreja se queira renovar.
Ana Bessa é católica e foi directora do Secretariado Diocesano da Pastoral Juvenil do Patriarcado de Lisboa (1983-1986).