Igreja Católica: e agora?

| 20 Fev 2023

apresentacao relatorio final comissao abuso sexuais de crianças na igreja foto clara raimundo

Apresentação do relatório na Fundação Gulbenkian: “A Comissão vai mais longe: “a uma cultura de reconhecimento inequívoco da existência de abusos sexuais de crianças no interior da Igreja Católica portuguesa, só pode corresponder uma atitude e uma prática que recusem a ocultação ou o encobrimento dos factos. Foto © Clara Raimundo

 

“E agora?”, esta é a grande pergunta desde que foi apresentado o Relatório Final (RF) da Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa.

No Relatório são feitas várias recomendações (cfr. RF, p. 447-460): a Igreja dirigir às vítimas um “pedido de perdão” e assegurar-lhes apoio psicológico ou psiquiátrico; criar uma nova comissão pluridisciplinar, com maioria de membros externos à Igreja, para continuar a receber as denúncias de abusos; garantir o seguimento em psiquiatria dos alegados abusadores; e alargar o prazo de prescrição destes crimes, até a alegada vítima ter 30 anos de idade. O Relatório também afirma que, dada a natureza pública dos crimes sexuais contra crianças, impende sobre a Igreja o dever moral e cívico de os participar ao Ministério Público, independentemente dos seus procedimentos internos (cfr. RF, p. 450).

A Comissão vai mais longe: “a uma cultura de reconhecimento inequívoco da existência de abusos sexuais de crianças no interior da Igreja Católica portuguesa, só pode corresponder uma atitude e uma prática que recusem a ocultação ou o encobrimento dos factos (…). Do mesmo modo, não pode deixar de ser recomendada a recusa definitiva de um movimento de negação da ocultação anterior que, a subsistir, transformaria, a partir daqui, os «problemas» detetados «no» seio da Igreja em problemas estruturais, afinal, próprios «da» Igreja” (cfr. RF, p. 454-455).

Faltam as palavras para agradecer a coragem das pessoas que se disponibilizaram a expor-se perante a Comissão, dando testemunho como vítimas de abuso sexual em criança na Igreja Católica portuguesa. Uma mensagem de apreço aos membros da Comissão pelo seu trabalho extraordinário e pelo precioso contributo que deram ao revelar “a ponta de vários icebergs” (cfr. RF, p. 447). Uma última palavra para a Conferência Episcopal Portuguesa, por finalmente ter acedido a criar esta Comissão Independente.

Os abusos testemunhados à Comissão referem-se ao período 1950-2022 e a Igreja não pode ignorar que, em 77% dos casos, os alegados agressores eram padres no momento em que ocorreram os abusos. Se a estes adicionarmos religiosos(as) e seminaristas, o valor sobe para 85,8% (cfr. RF, p. 203-204).

Outros dados, menos sublinhados, indicam que do total de casos registados de “primeiro abuso” sexual a criança, 11,6% tiveram lugar já neste século XXI (2001-2022). Na verdade, mais de 56 testemunhos respeitam aos últimos 22 anos e 25 referem-se a crianças que já nasceram entre 2001 e 2016 (cfr. RF, p. 9-12). Pior, estes números estão longe de retratar a realidade atual, visto que a Comissão estima que a esmagadora maioria das crianças só revela o abuso, em média, mais de 10 anos depois dos factos (cfr. RF, p. 175). Em suma, a dura realidade é que o abuso sexual a crianças na Igreja Católica portuguesa não é apenas uma mácula do passado, é também uma realidade negra do presente. Acresce que, segundo a Comissão, “muitas” das pessoas referenciadas como abusadoras estão ainda hoje em atividade eclesiástica na Igreja Católica portuguesa (cfr. RF, p. 447).

 

Voltemos, então, à pergunta: e agora?

 abusos, foto c doidam10 (1)“Chegou finalmente a hora de “tirar a cabeça da areia”, parar e fazer silêncio interior para que o Espírito Santo tenha a oportunidade de fazer o seu papel de iluminar o caminho.” Foto © DR 

 

Se a opção for manter ou simplesmente maquilhar os procedimentos do passado, a realidade não se alterará. Sem dúvida, é indispensável implementar as recomendações da Comissão para atender ao sofrimento das vítimas e sancionar abusos passados, mas isso não será suficiente para atacar as causas do problema, que estão para lá das competências da Comissão. É importante começar por reconhecer que a situação a que chegámos tem raízes profundas na vida e na estrutura da Igreja Católica, está cristalizada pelo tempo e não se circunscreve às fronteiras nacionais. Estes problemas perduram na Igreja independentemente das geografias e dos contextos socio-económicos, políticos, culturais, familiares e religiosos. E é insustentável!

É necessária uma verdadeira “pedrada no charco”!

Chegou finalmente a hora de “tirar a cabeça da areia”, parar e fazer silêncio interior para que o Espírito Santo tenha a oportunidade de fazer o seu papel de iluminar o caminho. Aproveitar para ver a realidade (esta e todas as outras) de forma objectiva, com humildade e verdade, recusando os filtros de leitura que têm contribuído para a desfocar e distorcer.

Depois, importa julgar a Igreja que somos, sem pré-conceitos, num exercício que dê verdadeiramente voz ao povo de Deus – e não sempre aos mesmos. No seguimento do Concílio Vaticano II, o Papa Francisco tem dado um novo impulso a uma ampla dinâmica de participação, aberta a todos, propondo um caminho sinodal. Esta participação alargada e diversificada devia marcar o dia a dia da vida da Igreja, e ainda mais em momentos como este. Uma participação que deve ser verdadeiramente comunitária, aberta e inclusiva das periferias, de fora para dentro.

Este caminho participado só será frutuoso e revitalizador se feito com o coração aberto para compreender os outros e estar disponível para acolher leituras e sugestões distintas, ouvir críticas e até opiniões controversas. Passa, ainda, por a Igreja criar mecanismos concretos para o exercício, há muito adiado, de uma verdadeira e total corresponsabilidade, através da participação efetiva dos leigos nas tomadas de decisão sobre a vida e o governo da Igreja, bem como sobre as suas opções pastorais.

Só um movimento de abertura à participação e uma atitude de disponibilidade para a acolher permitirá que a Igreja Católica, em comunidade, e à luz do Evangelho e da mensagem original de Jesus Cristo, proceda ao discernimento que conduza, finalmente, à reforma profunda de que tanto precisa para tocar o coração das pessoas.

Aproveitemos a extraordinária oportunidade do caminho que estamos a percorrer com o Papa Francisco, no âmbito do Sínodo “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, para dar passos concretos, visíveis aos olhos de todos, que façam a diferença na vida das pessoas e nos seus diversificados caminhos com Cristo.

A Igreja Católica portuguesa tem, e agora ainda mais, o dever de dar um contributo para a reforma necessária, levando ao Sínodo, com clareza e verdade, as principais preocupações dos católicos portugueses que a própria Conferência Episcopal Portuguesa resumiu no Relatório de Portugal ao Sínodo 2021-2023 (cfr. Relatório de Portugal ao Sínodo 2021-2023).

Agora, é tempo de agir, assim a Igreja se queira renovar.

 

Ana Bessa é católica e foi directora do Secretariado Diocesano da Pastoral Juvenil do Patriarcado de Lisboa (1983-1986).

 

Os silêncios de Pio XII foram uma escolha – e que custos teve essa opção?

“A Lista do Padre Carreira” debate

Os silêncios de Pio XII foram uma escolha – e que custos teve essa opção? novidade

Os silêncios do Papa Pio XII durante aa Segunda Guerra Mundial “foram uma escolha”. E não apenas no que se refere ao extermínio dos judeus: “Ele também não teve discursos críticos sobre a Polónia”, um “país católico que estava a ser dividido pelos alemães, exactamente por estar convencido de que uma tomada de posição pública teria aniquilado a Santa Sé”. A afirmação é do historiador Andrea Riccardi, e surge no contexto da reportagem A Lista do Padre Carreira, que será exibida nesta quarta-feira, 31 de Maio, na TVI, numa parceria entre a estação televisiva e o 7MARGENS.

Apoie o 7MARGENS e desconte o seu donativo no IRS ou no IRC

Breves

 

JMJ realizou em 2022 metade das receitas que tinha orçamentado

A Fundação Jornada Mundial da Juventude (JMJ) Lisboa 2023 obteve no ano passado rendimentos de 4,798 milhões de euros (menos de metade do previsto no seu orçamento) e gastos de 1,083 milhões, do que resultaram 3,714 milhões (que comparam com os 7,758 milhões de resultados orçamentados). A Fundação dispunha, assim, a 31 de dezembro de 2022, de 4,391 milhões de euros de resultados acumulados em três anos de existência.

Debate em Lisboa

Uma conversa JMJ “conectada à vida”

Com o objectivo de “incentivar a reflexão da juventude” sobre “várias problemáticas da actualidade, o Luiza Andaluz Centro de Conhecimento (LA-CC), de Lisboa, promove a terceira sessão das Conversas JMJ, intitulada “Apressadamente conectadas à vida”.

“É o fim da prisão perpétua para os inimputáveis”, e da greve de fome para Ezequiel

Revisão da lei aprovada

“É o fim da prisão perpétua para os inimputáveis”, e da greve de fome para Ezequiel novidade

Há uma nova luz ao fundo da prisão para Ezequiel Ribeiro – que esteve durante 21 dias em greve de fome como protesto pelos seus já 37 anos de detenção – e também para os restantes 203 inimputáveis que, tal como ele, têm visto ser-lhes prolongado o internamento em estabelecimentos prisionais mesmo depois de terminado o cumprimento das penas a que haviam sido condenados. A revisão da lei da saúde mental, aprovada na passada sexta-feira, 26 de maio, põe fim ao que, na prática, resultava em situações de prisão perpétua.

Especialistas mundiais reunidos em Lisboa para debater “violência em nome de Deus”

30 e 31 de maio

Especialistas mundiais reunidos em Lisboa para debater “violência em nome de Deus” novidade

A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) acolhe esta terça e quarta-feira, 30 e 31 de maio, o simpósio “Violence in the Name of God: From Apocalyptic Expectations to Violence” (em português, “Violência em Nome de Deus: Das Expectativas Apocalípticas à Violência”), no qual participam alguns dos maiores especialistas mundiais em literatura apocalíptica, história da religião e teologia para discutir a ligação entre as teorias do fim do mundo e a crescente violência alavancada por crenças religiosas.

Agenda

There are no upcoming events.

Fale connosco

Autores

 

Pin It on Pinterest

Share This