
Ruínas do Mosteiro de Clonmacnoise (Irlanda), fundado em 544 por São Ciarán. Foto © António Marujo.
O encontro e diálogo com a cultura dominante “exige que a Igreja esteja aberta a considerar o que tem valor nas novas normas da sociedade e o que é válido na crítica que esta faz à Igreja”.
Este é um dos focos que a Igreja da Irlanda aponta como dificuldade e como desafio para o seu futuro, no documento-síntese nacional que acaba de enviar para o secretariado-geral do Sínodo sobre a Sinodalidade.
O documento faz notar que a Igreja se vê “cada vez mais empurrada para as margens da cultura popular [mediática]”, face à qual “luta para a compreender ou para encontrar uma linguagem com a qual seja compreendida”.
Nesta linha, apesar do ambiente de hostilidade, mas também do “inestimável serviço dos media independentes em expor os abusos e falhas dentro da Igreja”, as pessoas consultadas sentiram haver “fortes razões” para um maior envolvimento com a cultura mais ampla, que permita igualmente “destacar o grito dos pobres e o grito da Terra” e “uma sociedade de consumo [que] falhou em oferecer sustentabilidade, equidade ou satisfação com a vida”.
Esse encontro e diálogo supõe discernimento permanente, atenção ao “ao risco de assimilação” e “a construção de pontes para conectar com as pessoas do nosso tempo e as suas alegrias e esperanças, tristezas e ansiedades”.
A consulta, na Irlanda, procurou “alcançar um espectro tão amplo quanto possível”, apoiada no trabalho de “facilitadores” que ouviram pessoas nas áreas urbanas e rurais, indo ao encontro de pessoas que frequentam as igrejas e as que não são praticantes e dos mais diversos ambientes (trabalho, família, bairro, escolas, gente das margens…).
Num processo que foi “novo para muitas pessoas”, revelou-se difícil contactar com os mais jovens, que participaram mais através da internet do que presencialmente. Apesar de tudo, foi “um período de graça” e “uma oportunidade para o fortalecimento da fé”, especialmente visível na assembleia nacional pré-sinodal que a equipa de coordenação nacional organizou oportunamente, liderado por Nicola Brady.

Os abusos como “lente para ler tudo o mais”
A síntese destaca dezena e meia de temas que sobressaíram na fase de escuta e consulta local. A lista abre com o impacto do problema dos abusos sexuais, psicológicos e espirituais, considerados já “uma parte da história da Igreja irlandesa”. A escala que o problema atingiu “criou um enorme sentimento de perda”, impregnado nas respostas recebidas. Por isso, sublinha a síntese nacional, os abusos são “uma lente através da qual tudo o mais precisa ser visto”. A Igreja é, por isso “convidada a questionar-se como as suas próprias estruturas e modus operandi contribuíram para esta crise”, acrescenta o documento.
Outros temas confluem em grau muito acentuado com aspetos enfatizados no processo sinodal vivido noutros países, tanto quanto é possível ir tendo conhecimento das sínteses finais (no caso de Portugal, continuamos sem síntese nacional e sem informação sobre quando será divulgada).
Assim, quanto à corresponsabilidade na liderança, a Irlanda sublinha cinco palavras: responsabilidade, transparência, participação, partilha, boa governação. Elas exprimem sobretudo esperanças para o futuro da Igreja, por parte dos fieis leigos, visto que nomeiam “o que estava ausente na experiência vivida da Igreja”.
Os padres surgem, de forma geral, com uma imagem bastante positiva e tidos como devendo continuar a ter um papel essencial no futuro. Mas sublinha-se o seu envelhecimento, o excesso de trabalho que têm, com frequência em tarefas administrativas e de gestão. Nota-se que os padres mais novos se destacam pelo conservadorismo e rigidez. Isto obriga a repensar a respetiva formação, de forma a poderem acompanhar o processo sinodal.
Neste quadro surge o desejo, quer dos mais velhos quer dos mais jovens, de que o celibato se torne opcional, que casados possam ser ordenados presbíteros e que os que abandonaram o ministério possam regressar.
O papel das mulheres na vida da Igreja deve merecer uma consideração particular, na base de que devem receber tratamento igual dentro das estruturas. Muitas mulheres disseram “não estar mais preparadas para serem consideradas cidadãs de segunda classe e muitas estão a deixar a Igreja”. Em diversas sínteses locais reivindica-se igualmente a possibilidade de acederem aos ministérios ordenados. “A sua exclusão do diaconado é considerada particularmente dolorosa”, enfatiza o texto.
Este tema do papel das mulheres é objeto de uma crítica mais contundente da parte dos mais jovens, que acentuavam a dificuldade de compreender também o modo como a Igreja entende a sexualidade (“uma barreira” à sua aproximação à Igreja) e o modo como lidou com os abusos.
O Espírito também fala nos silêncios e ausências

Uma marca interessante da síntese irlandesa reside no facto de ter incluído matérias menos presentes ou até silenciosas nos contributos das dioceses. “Consciente de que o Espírito Santo também fala através do silêncio e da ausência”, o documento enviado para Roma enuncia quatro temas que emergiram no discernimento nacional que foi possível fazer de forma participada, a partir de uma primeira apresentação das sínteses diocesanas.
Desse não-dito, destaca-se “o contexto ecuménico e inter-religioso mais amplo”, que tem passado por uma fase intensa que é fonte de esperança no “ultrapassar divisões do passado recente”; as questões ambientais e de cuidado pela “casa comum”, que surgiram sobretudo de um grupo “Laudato Si”; a justiça social, um campo de empenhamentos, em que a Igreja tem tido e pode ter mais ainda um papel relevante; e, finalmente, a ação missionária da Igreja da Irlanda, campo em que este país teve um papel significativo nos dois últimos séculos.
Numa Igreja que vive ainda em processo de cura, depois dos múltiplos casos traumáticos de que tomou consciência nas décadas mais recentes (especialmente os casos dos maus tratos e abusos em internatos dirigidos por religiosas e dos abusos sexuais), os católicos irlandeses querem que as dioceses colaborem mais, que haja uma coordenação nacional, uma ação em conjunto e que se pratique a partilha da palavra e da escuta. Como foi observado nas “conversas espirituais” na assembleia pré-sinodal nacional, “os cismas acontecem porque as pessoas param de falar” umas com as outras.