A sociedade secular, com a autonomia que lhe advém do Criador e da sabedoria humana que se espelha nas culturas e organizações políticas e religiosas, ó o único espaço onde a Igreja pode realizar a missão que Jesus Cristo lhe confia. A sociedade habitada pelos seres criados e enriquecida pelos dons da natureza e do trabalho humano, como bem se afirma na apresentação do pão e do vinho na eucaristia.
Esta verdade sublime tem outra face, como advertia o cardeal de Goa e Damão, na Índia, D. Filipe Néri Ferrão, em entrevista à Rádio Renascença. Sobre os desafios atuais dos cristãos na Índia, onde o cristianismo é minoritário, observa que ser cristão na Índia hindu “apresenta o mesmo tipo de problemas e desafios” que se vivem num mundo caracterizado pelo secularismo, materialismo, consumismo, “com o seu inevitável impacto sobre a vida e a vivência cristã”.
As pessoas honestas de um mundo secularizado não rejeitam os apelos do transcendente e do religioso, se não encontram resposta rumam “à procura como peregrinos e vão batendo às portas onde se anuncia algo que tenha a ver com o espiritual que grita e incomoda dentro de cada um”, escrevia o antigo bispo de Aveiro, António Marcelino (A vida também se lê, vol. IV, p. 106).
No Curso de Missiologia realizado em Fátima, de 22 a 27 de Agosto de 2022, afirmava o arcebispo de Braga, D. José Cordeiro, ao apresentar o tema “A missão em Portugal e desde Portugal”: “O problema fundamental é que não temos adultos na fé, não temos adultos em Cristo. E sem fé enraizada em Cristo Ressuscitado não se dá testemunho apelativo na sociedade secular.”
Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, verifica que “hoje a Igreja parece viver muito dentro da praça eclesiástica, apesar dos convites do Papa Bergoglio para sair… Muitas vezes os discursos eclesiais não falam a vida comum.”
A Igreja é vista como sendo “demasiado hierárquica, clerical, corporativa, pouco transparente, estagnada, resistente à mudança”, dando prioridade à manutenção da imagem, ao invés de preservar a segurança da comunidade, surgindo os casos de pedofilia como exemplo mais evidente. Uma Igreja pouco disponível para discutir de forma aberta e descomplexada a possibilidade de tornar opcional o celibato dos sacerdotes e a ordenação de homens casados e das mulheres, sem as considerar em igualdade com os homens na missão, pode ler-se no relatório enviado pela Conferência Episcopal Portuguesa, CEP, para a Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos
O diagnóstico está feito. É preciso ser consequente. A experiência sinodal abre caminhos. A sociedade secular espera os contributos dos cidadãos cristãos para fomentar a humanização integral.
O Papa Francisco, com lucidez profética, aponta caminhos. Aprecia a sã secularidade e destaca o estilo de proximidade, a necessidade de combinar contemplação e missão, de encontrar na familiaridade com Deus a força para o serviço como vocação fronteiriça; de redescobrir e mostrar o rosto da Igreja samaritana que necessita de fazer presente a sua laicidade sem pretensões e de ver os seus pastores implicados neste processo transformador. “Não vos canseis de levar ao mundo o anúncio da vida nova, da fraternidade universal e da paz duradoura, esplêndidos dons do Senhor ressuscitado” (Discurso aos Institutos Seculares).
Georgino Rocha é padre católico da diocese de Aveiro e desempenhou já o cargo de vigário diocesano da pastoral.