Igrejas que afastam de Deus?

| 12 Set 2021

“Igrejas que afastam de Deus? Porque faltam “padres cultos e capazes de dialogar”,” Foto © Nazim Coskun/Unsplash

 

Igrejas que afastam de Deus? São aquelas que não sabem ligar o sagrado ao profano. E porquê?

Porque faltam “padres cultos e capazes de dialogar”, como dizia recentemente, com toda a naturalidade, Lídia Jorge.

Utilizo “igrejas” não no sentido de templo ou instituição hierárquica, mas de comunidades dos crentes em Jesus Cristo. E baseio-me livremente nos vários artigos relacionados com Dimas de Almeida, publicados recentemente no 7MARGENS.

“Cultos” e “dialogar” aparecem entre aspas: apontando o significado especial, neste contexto, de cultura e capacidade de diálogo. Pois aplicam-se a quem cabe a responsabilidade de manter o contínuo dinamismo característico de qualquer religião autêntica.

Uma pessoa “autêntica” não se quer enganar a si própria nem enganar os outros. A religião é autêntica quando se fundamenta no reconhecimento de que os seres humanos se questionam sobre o sentimento de se encontrarem ligados (“ligar” é o étimo mais provável de religião) a uma realidade que está para além do universo alcançável pelos diversos níveis de conhecimento, da experiência comum e científica.

É o clássico tema do “sagrado e profano”. Sagrado deriva da raiz indo-europeia sak, cujo sentido geral é separar. Também dela derivam “ciência” e “esquizofrenia” – o pensamento profundo e um modo patogénico de “catalogar” a vida. Por outro lado, o “profano” significa “estar diante do templo” (fanum em latim), portanto separado do espaço sagrado (e “templo” deriva de um verbo que significa cortar, criando um lugar separado).

Separação parece assim um conceito central à religião: que tem de ser pensado e que por outro lado se pode tornar doentio. Mas só concebe a separação quem experimenta a ligação. Até porque a separação característica do sagrado só pode ser expressa por palavras tiradas da nossa experiência. E a expressão será tanto mais profunda quanto mais profunda for a nossa inserção no mundo em que vivemos. Doutro modo, a experiência religiosa, em que se sente a força de uma realidade totalmente diferente, corre o risco de se tornar patológica. Muitas experiências místicas são classificáveis como tal.

Por isso, vale a pena meditar nesta frase: “contemplação na acção”. O equilíbrio exige a ligação com o nosso mundo. Em qualquer religião, “encontramo-nos diante do mesmo acto misterioso: a manifestação de algo ‘de ordem diferente’ – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objectos que fazem parte integrante do nosso mundo ‘natural’, ‘profano’” (M. Eliade, O Sagrado e o Profano).

Ligação que se manifesta no tipo de organização das comunidades e na riqueza e dinamismo das actividades culturais, sem esquecer a técnica do que eu chamo “grupo perfeito”: em que todos ouvem e em que cada qual se sente livre para falar, finalizando com a consideração das razões mais válidas.

Se tomarmos o exemplo de Calvino, notamos que o alto grau de experiência religiosa não fez dele um “sacerdote” oficialmente, mas uma pessoa que, através de um aparentemente simples sistema de organização, procurou um modo favorável ao enriquecimento da experiência religiosa. Em vez de uma hierarquia ao jeito dos históricos sistemas de poder (pretensamente fundamentados numa espécie de revelação divina), propôs apenas assegurar a qualidade da pregação, ensino, organização da comunidade e de outros serviços na linha da natureza humana, segundo os dons pessoais de quem estiver disposto para o serviço de nos aproximar de Deus. Preocupou-se com a ligação do sagrado e profano.

Como disse Dietrich Bonhöffer, “Deus mistura-se com a História nas formas mais inesperadas”. Mas a procura de Deus é tanto mais credível quanto mais aprofundarmos o conhecimento e experiência da nossa História.

Valia a pena reflectir sobre a famosa experiência dos “padres operários”, que levantou problemas à organização eclesial e à pastoral. Está em causa o sentido de vocação: vários padres testemunharam como a vocação sacerdotal se esclareceu e enriqueceu ao viverem como trabalhadores normais, alugando um quarto numa casa de família, que por vezes ignorava conviver com um padre. Eram vistos como homens bons, dedicados ao trabalho e à qualidade das relações humanas. Suponho que em muitos casos tiveram a experiência, padres e leigos, de como a aventura da vida humana se enriquece por meio da ligação entre “o sagrado e o profano”.

Muito importante terá sido a imersão natural no mundo feminino. Faz-me lembrar a carta de Maria Lía enviada ao Papa Francisco sobre o papel das mulheres na gestão da Casa Comum e particularmente na “Igreja com os dons que o Pai Criador lhes deu”.

As ideias-chave estão expostas com simplicidade e vigor tipicamente “franciscanos”. Só duvidei até que ponto propunha a participação feminina no corpo de professores e formadores de futuros sacerdotes.

Preferia porém alterar a frase em que ela ambiciona um “Sínodo do Povo de Deus com uma representação proporcional do clero, consagrados e consagradas, e leigos”. Proponho a inversão da lista dos representantes: leigos – consagrados e consagradas – clero. Porque considero esta a progressão natural a ser defendida. Fortalece e protege a responsabilidade dos leigos em criar ambiente propício às vocações “espirituais”, ao reconhecimento do seu valor e ao discernimento das verdadeiras vocações. Aliás, qualquer actividade neste mundo devia poder partir desta base.

Não se tem levado a sério o conceito de vocação, que define o caminho em que cada pessoa se vai descobrindo realizada, dando passos livres e racionais. As qualidades e responsabilidades principais requeridas para cada tipo de “serviço religioso” estarão a ser apresentadas claramente, dando sempre a maior atenção possível ao sentido vocacional de qualquer candidato? O pragmatismo, evidentemente, obriga a “desvios” vocacionais; e a autenticidade descobre frequentemente que a realização pessoal exige outro caminho – um processo que pode acontecer ao longo da vida inteira.

Água. EUA, Dacota do Norte, Igrejas cristãs, casa comum

“O sacerdote moderno não pode deixar de olhar criticamente para os grandes problemas da civilização e da comunidade com que trabalha.” Foto: Líderes e clérigos de igrejas cristãs na defesa dos direitos dos povos indígenas em Standing Rock, ameaçados por um oleoduto no Dacota do Norte (Estados Unidos). © Steven D. Martin/NCCCUSA/WCC-CMI

 

“Estamos a arriscar o futuro da Igreja e a sua credibilidade no curto prazo” (Cristina Inogés-Sanz, no 7MARGENS.)

A trabalhosa vida de um sacerdote, sobretudo se sobrecarregada com um papel administrativo (como os párocos, mas não só), não pode esquecer o valor da História, da Arte e da Cultura em geral, nem ficar alheia às suas expressões locais, que incluem a religião popular. Quanta poesia é a melhor ligação com Deus – mesmo ou sobretudo se não fala directamente de Deus? Nem pode deixar de olhar criticamente para os grandes problemas da civilização e da comunidade com que trabalha. Precisa de saber falar sobre os pecados modernos, destruidores da Casa Comum e da Justiça – sem fugir a achegas políticas criticamente equilibradas.

À frente da comunidade de fiéis, o sacerdote não sabe tudo, mas deve saber falar e como abordar as atitudes cristãs que importa desenvolver.

É complicada a formação para o serviço sacerdotal. E por isso os leigos têm que ajudar na sustentabilidade de uma Igreja credível e atraente.

 

Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino universitário.

 

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