As sínteses dos contributos de mais de 150 mil pessoas que participaram na auscultação promovida pelo Sínodo nas paróquias, movimentos e outras estruturas católicas em França dão especial destaque ao papel das mulheres, à participação dos leigos e leigas em órgãos com poderes deliberativos e a uma vida de comunidades que valorizam o encontro com a Palavra de Deus e a escuta e acolhimento dos mais frágeis da sociedade.
Para aqueles que temiam que as sínteses diocesanas e a síntese nacional suavizassem ou até censurassem algumas matérias mais polémicas, os documentos vindos a público nos últimos dias mostram que isso não aconteceu.
Como referiu o bispo Alexandre Joly, da diocese de Troyes, coordenador da comissão nacional do Sínodo, na apresentação da síntese das sínteses diocesanas, na última quinta-feira, 9 de junho, procurou-se fazer “um relato o mais honesto possível das questões abordadas…, bem como das tensões e aspirações reveladas por este processo” de auscultação.
O bispo de Troyes esclareceu ainda que o episcopado francês fará uma assembleia extraordinária nesta terça e quarta-feiras, 14 e 15, para a qual convidaram religiosos e leigos de todo o país, num total de mais de uma centena de participantes. O objetivo é fazer um trabalho de discernimento com base no documento agora apresentado e publicado, do qual se espera que saiam orientações para o futuro, traduzidas num texto votado apenas pelos bispos (os leigos participarão em toda a assembleia, ainda que sem direito a voto, dada a natureza da reunião).
Resistências de vários tipos
O processo sinodal em si registou “generosa participação” de pessoas que tiveram “a sensação de viver uma experiência promissora”. Mas a síntese não foge a enunciar “resistências de vários tipos”, encontradas no caminho. Entre elas, o documento destaca, “primeiro, a dificuldade de ouvir as vozes dos mais frágeis; depois, a dificuldade em alcançar e mobilizar os jovens e os jovens adultos; o temor de alguns católicos de que este processo sirva para impor mudanças na Igreja à qual estão ligados; finalmente, a dificuldade de muitos sacerdotes em reconhecer o interesse deste sínodo”.
A síntese nacional estrutura-se em três partes. A primeira, intitulada “Fundar-se na Palavra de Deus”, exprime um desejo amplamente partilhado de promover tempos e espaços de leitura e meditação comum dos textos bíblicos, em que a experiência de vida das pessoas possa estar presente. Seriam espaços abertos mesmo a não praticantes, que estivessem interessados nesse tipo de encontros.
Neste ponto, referiu-se que as homilias suscitam muitas deceções, sobretudo “quando a pregação não é suficientemente fundamentada na Palavra de Deus e não alimenta a vida cotidiana dos batizados”.
A sinodalidade é uma aprendizagem
Em várias dioceses questiona-se o monopólio das homilias por parte do clero e defende-se explicitamente que possam ser feitas por leigos, e especificamente por mulheres. Este “pedido recorrente” está relacionado com um outro: “uma melhor formação bíblica dos batizados, assim como uma verdadeira formação dos pastores em homilética”.
A segunda parte do documento, de longe a mais extensa, aborda o desejo de “Dar sinais credíveis da bondade de Deus e da igual dignidade dos batizados”. Começa por uma citação da diocese de Belfort-Montbéliard, segundo a qual “os leigos gostariam de mais escuta e menos relações hierárquicas entre leigos e entre leigos e padres”, de modo a adquirirem “a liberdade de ousar propor iniciativas a toda a paróquia e esperar que elas sejam acolhidas”. Sublinha, neste contexto, que “a sinodalidade é uma aprendizagem” constante, e que é preciso que essa aprendizagem prossiga, depois desta primeira etapa do atual Sínodo.
Reforma da formação e estatuto do clero
Especificamente sobre os ministérios e aqueles de que a Igreja precisa, a síntese francesa começa por dar conta de um “agradecimento aos presbíteros” pelo seu compromisso e resposta perante expectativas tão diversas. Mas quer que eles se dediquem àquilo que lhes é específico, particularmente celebrar, escutar e acompanhar as pessoas e não prioritariamente administrar e gerir as paróquias. Problemas recorrentes nas dioceses são, da parte do clero, nomeadamente “o autoritarismo e dificuldades nas relações com as mulheres”, segundo o documento.
Daí que a questão da formação deva merecer uma atenção particular. As propostas feitas vão em duas direções. Por um lado, uma formação comum para ministros ordenados, ministros instituídos e todos os batizados. Por outro lado, fazer evoluir a formação humana dos futuros sacerdotes (qualidades relacionais, equilíbrio pessoal, capacidade de governar e comunicar).
Finalmente, ainda quanto ao clero, o documento da Igreja francesa entende que ser padre e ser casado devem ser compatíveis, pelo que será necessário terminar com a atual obrigatoriedade da disciplina do celibato.
Homens e mulheres: a mesma dignidade batismal
É de “urgência” e de “inúmeras feridas” que se fala na síntese, quando se trata do papel das mulheres. “As feridas – sublinha o texto – vêm das dificuldades nas relações com padres e bispos, e da gritante desproporção entre o número de mulheres envolvidas na Igreja e o número daquelas que estão em posição de decidir. Se o serviço das mulheres é apreciado, a sua voz parece ignorada”. A urgência reside nas expectativas de que passem a ter papel ativo e efetivo nos “múltiplos discernimentos das Igrejas locais”.
“A forma como as mulheres são tratadas na Igreja não se ajusta à sua missão, num momento em que a igualdade entre homens e mulheres se tornou uma evidência comum. A dor é tanto maior quanto nasce desta convicção: a Igreja priva-se, assim, de inúmeros carismas e de possibilidades reais de romper com o círculo clerical”. E, socorrendo-se do contributo de um grupo de mulheres da Mission de France, a síntese denuncia: “Quanto ao papel das mulheres, todos se estão a mexer, exceto a Igreja. […] Nós revoltamo-nos com a desigualdade entre mulheres e homens, desde cedo, dentro da Igreja. Queremos outro modelo para nossos filhos”.
O contributo da diocese de Périgueux refere, nesta linha, que o lugar da mulher na hierarquia católica precisa de ser completa e urgentemente repensado, de forma aprofundada, inclusive teologicamente, como pedem muitos grupos sinodais.
Diferentes sínteses diocesanas solicitam, por isso, que as mulheres possam receber a ordenação diaconal, como “um primeiro passo simbólico importante” e que a homilia possa, como se referiu já, ser proferida por mulheres. “Com um pouco menos de frequência, ainda que amplamente recorrente, encontramos o pedido de que as mulheres possam ser ordenadas como presbíteros” – anota também a síntese.
A governança na Igreja e os carismas
As comunidades eclesiais manifestam interesse em constituir-se com base nos carismas de cada uma e de cada baptizado que as integra, segundo o texto da síntese das dioceses. Porém, as dificuldades e tensões são de monta. Entre os exemplos fornecidos, refere-se: “a experiência recorrente de abuso de poder, a configuração ‘piramidal’ do governo, o medo do conflito, que convida a esconder os problemas em vez de os enfrentar, a chegada de um novo pároco que impõe uma direção contrária à que prevalecia até então numa paróquia… “
De tais tensões emergem aspirações, entendidas como caminhos de superação: “que o envio em missão seja claro e explícito; que os mandatos sejam limitados no tempo; que a avaliação das missões e da vida comunitária seja praticado com regularidade e seriedade”; e que haja “uma certa transparência nos processos de decisão e nas questões financeiras”.
Diversificação das liturgias
É verdade que a eucaristia dominical ocupa um lugar central e é um poderoso agente de construção da comunidade cristã. Mas as sínteses das dioceses apelam de forma saliente a uma diversificação das liturgias.
Nessa direção, a síntese nacional recorta três vetores: o primeiro, já mencionado, diz respeito aos espaços de oração e às celebrações da Palavra, nas quais o lugar central é dado à escuta e meditação dos textos bíblicos. A segunda, menos frequente, aponta a importância das romarias e da piedade popular. A terceira visa uma renovada formação litúrgica, para enfrentar o que muitas sínteses apontam como o hermetismo da linguagem corrente na Igreja.
A liturgia parece ser, em França, um lugar e um tema de tensões, que a síntese nacional dá a perceber: entre os que gostariam de “flexibilidade pastoral” e os apegados aos rituais; entre os que apreciam a riqueza dos símbolos litúrgicos e os que questionam a linguagem para muitos ininteligível. Em alguns contextos, os jovens “aspiram a envolver-se na preparação e celebração da liturgia, mas sentem-se pouco solicitados pelas comunidades” onde dominam gerações mais velhas.
A terceira e última parte do documento intitula-se “Viver como irmãos e irmãs em Cristo” e refere-se a uma aspiração que se considera amplamente partilhada nas sínteses diocesanas: “a sede da escuta”. A citação do contributo de um grupo local resumiria bem esta “sede”:
“A Igreja deve estar aberta, ir ao encontro das pessoas, ter tempo para se encontrar, para ouvir. Deve dar voz a todos, ser uma Igreja que anima, para que a luz, a paz, inunde os corações. Uma Igreja que leva consigo um olhar e que não julga”.
Esta preocupação passa por modos de estar e de agir que englobam os serviços da fraternidade e a promoção da escuta e do diálogo.