
O irmão Biagio Conte junto à estátua de Santo António, de quem era devoto, na Praça de Alvalade, aquando da sua passagem por Lisboa em 2019. Foto © Giovanna Campagnolo.
Há exatamente quatro anos, em janeiro de 2019, chegava a Lisboa o fratel Biagio. A capital portuguesa era apenas uma das etapas da longa peregrinação que havia iniciado na Sicília com destino final a Marrocos, sempre a pé. Chegava com as sandálias consumidas, a túnica verde com capuz a cobrir-lhe a cabeça, uma bengala de madeira grosseira, de cruz e vieira ao peito. Sem dinheiro, nem telemóvel, nem relógio: em espírito de absoluta entrega à providência. O irmão Biagio Conte, missionário leigo franciscano italiano, que, em Palermo, dedicou a vida ao serviço dos mais pobres e sós, morreu na passada quinta-feira, 12 de janeiro, e eu nunca esquecerei o nosso encontro.
Estava junto ao sacrário, na paróquia do Campo Grande, quando o vi. Aqui ninguém o conhecia, e arriscava passar por fanático ou mendigo, mas não se importava. Chamei-o pelo nome, sem disfarçar a incredulidade. Durante a sua longa peregrinação, parava em todas as igrejas que encontrava, beijava o portão e permanecia em oração. De noite, batia à porta da igreja local e pedia uma cama e uma refeição (a única do dia), em humildade e sem medo da recusa, confiante na Igreja de Cristo. “Nem sempre as portas se abrem – contou-me ele. – Em Santiago de Compostela, pátria dos peregrinos, por absurdo que pareça, dormi na rua durante quatro noites. Aqui em Portugal é diferente: as pessoas são bondosas, o clima é temperado, parece que estou na Sicília! Até a língua é parecida com o nosso dialeto!”

Durante a sua longa peregrinação, o irmão Biaggio Conte parava em todas as igrejas que encontrava, beijava o portão, e permanecia em oração. Um dessas igrejas foi a do Campo Grande, em Lisboa. Foto © Giovanna Campagnolo.
Em Itália, toda a gente conhece o fratel Biagio, não só pelo empenho em favor de milhares de marginados, mas também pelas clamorosas ações de resistência não-violenta – como quando em 2018 dormiu na rua durante dez dias, em jejum, para denunciar a indiferença das instituições para com os sem abrigo. Em 2014, foi notícia a sua visita a Lourdes, onde, depois da imersão na piscina milagrosa, recuperou da enfermidade que o deixara numa cadeira de rodas durante muito tempo. Na altura, os médicos declararam que o sucedido não tinha explicação científica, enquanto a Igreja não se pronunciou. Depois deste evento inexplicável, o missionário decidiu então recomeçar a andar, e fê-lo de forma radical, como era próprio da sua forma de viver a fé.
Em 2016, começou uma peregrinação penitencial por toda a Itália, tendo caminhado cerca de oito mil quilómetros ao longo de dois anos. Depois de uma breve pausa, apanhou o barco de Palermo até Génova e daí, a pé, continuou até Paris e Lourdes, atravessou os Pirenéus até Santiago e a seguir entrou em Portugal, direto a Fátima e Lisboa, motivado pela sua devoção a Nossa Senhora e a Santo António. Deixou Lisboa a caminho do sul de Espanha onde – atravessando o estreito de Gibraltar – chegaria a Marrocos, em março de 2019, seguindo os passos de São Francisco e o sonho comum da comunhão entre cristãos e muçulmanos.
A vida do “amigo dos pobres”
Nascido em 1963 numa família abastada, o jovem Biagio preparava-se para gerir a empresa familiar, apaixonado por arte e ciência, mas longe da fé. Aos 27 anos, uma crise espiritual, suscitada pelo escândalo da desigualdade entre os homens, levou-o a desaparecer. Deixou uma carta aos pais e, em solidão e eremitismo, caminhou até Assis para conhecer melhor São Francisco, do qual se aproximara graças à leitura. É no encontro com o santo de Assis e com os mais pobres que o seu caminho se esclarece rumo à vocação.
Regressa então a Palermo, onde começa a partilhar a vida com os sem abrigo da estação, chamando a atenção e a solidariedade de muitos cidadãos. Compreende assim que é preciso fazer mais e decide ocupar um grande local inutilizado, onde funda a Missione di Speranza e Carità. Os seus companheiros de rua agora têm um abrigo e são cada vez mais numerosos. Os voluntários vão buscá-los todas as noites com a carrinha da missão. Em poucos anos, a missão chega a acolher 800 pessoas nas suas três instalações, servindo 2.500 refeições por dia, graças ao empenho de 400 voluntários.
O fratel Biagio obteve a bênção de Bento XVI em 2010 e de Francisco em 2018, altura em que o Papa foi visitar a Missione di Speranza e Caritá e almoçou no refeitório, com o fratel Biagio, mas não só. Como já seria de esperar, não podiam faltar eles: os pobres, as pessoas pelas quais o irmão gastou todas as forças e as energias, até ao último dia.

Em 2018, o Papa Francisco foi a Palermo e almoçou com o irmão Biagio Conte e 160 pessoas pobres, migrantes, ex-reclusos e voluntários da Missione di Speranza e Caritá. Foto © Vatican Media.
Morreu a 12 de Janeiro, aos 59 anos, vencido pelo cancro. O Papa Francisco homenageou-o com um telegrama enviado ao bispo de Palermo, descrevendo-o como “generoso missionário da caridade e amigo dos pobres”. No texto, Francisco destacou como o missionário leigo via nos pobres “o rosto de Jesus” e como “se esforçava incansavelmente por eles, oferecendo-lhes consolo, proteção e esperança”. O Papa sublinhou ainda o “corajoso testemunho evangélico deste discípulo de Cristo que acendeu uma chama de amor na cidade de Palermo e no coração de todos os que o conheceram”.
O quarto do missionário encontra-se agora selado, por vontade do bispo, para preservar a memória do irmão, mas também com vista a uma eventual causa de beatificação. O seu funeral será celebrado esta terça-feira, 17 de janeiro, na catedral de Palermo.