O Sete Margens dá início à publicação de uma série de textos da autoria de Carlos Pinto de Abreu (advogado) e José Verdelho (jurista) sobre a história do Islão e as suas implicações no direito. O texto que agora se publica centra-se sobre as principais características do Islão e as suas fontes principais.

Primeira revelação do Anjo Gabriel a Maomé. Ilustração em miniatura em pergaminho do livro Jami’ al-Tawarikh (literalmente “Compêndio de Crônicas”, mas frequentemente referido como A História Universal ou História do Mundo), publicado em Tabriz, Pérsia. Biblioteca da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Foto © Rashid al-Din Ṭabib / Wikimedia Commons
O islão é uma das grandes religiões mundiais, pertencendo à família semita e tendo sido fundado na Arábia, no século VII d.C., pelo profeta Maomé.
O termo arábico “islam”, significando literalmente “submissão”, aponta para a ideia religiosa fundamental de que o crente aceita submeter-se à vontade de Alá. Alá é visto como o único Deus criador, dominador e restaurador do mundo.
A vontade de Alá foi tornada conhecida através do Alcorão, o livro revelado ao seu mensageiro, Maomé, que se crê ser o último de uma série de profetas (Adão, Noé, Moisés, Jesus…) e cuja mensagem ao mesmo tempo consuma e abroga as “revelações” dos profetas anteriores.
A crença mais importante do islão, expressa no “shahadah”, a confissão muçulmana da fé: “Alá é o único Deus e Maomé é o seu profeta”. Desta verdade fundamental derivam crenças:
- Nos anjos (particularmente o anjo da revelação, Gabriel)
- Nos livros revelados (de judeus, cristãos, zoroastras e hindus, para além do Alcorão)
- Numa série de profetas (particularmente eminentes, entre os quais figuram judeo-cristãos apesar de se crer que Deus enviou mensageiros a todas as nações)
- No último dia, o dia do julgamento…
A aceitação deste credo essencial envolve deveres que devem ser estritamente observados: cinco orações diárias, a esmola, o jejum e a peregrinação a Meca uma vez na vida, sendo os cinco (incluindo a profissão de fé) chamados “cinco pilares”.
Desde o princípio do islão, o profeta Maomé incutiu um sentido de fraternidade e uma energia de fé entre os seus seguidores, tendo ambos ajudado a desenvolver, entre eles, uma proximidade que foi acentuada pelas experiências de perseguição e pela comunidade nascente de Meca. O profícuo conteúdo social das práticas religiosas islâmicas (v.g. a esmola) cimentou o crescimento da fé.
A fuga para Medina

Em 622 d.C., quando o profeta fugiu para Medina, a sua pregação foi logo aceite, emergindo então a comunidade-estado do islão. A data da fuga de Maomé (Hégira) marca o começo do calendário muçulmano.
Durante este período inicial, o islão adquiriu o seu característico espírito como religião que unifica em si os aspectos da vida tanto espirituais como temporais e que procura regular não só o relacionamento individual com Deus, mas também o relacionamento humano na sociedade. Assim, há não só uma instituição religiosa islâmica, um Estado islâmico, mas também (para o que nos interessa) um “direito islâmico”.
Só recentemente foram objecto de distinção e separados formalmente por alguns (a minoria) pensadores muçulmanos, o religioso (privado) do secular (público). Este carácter dualista, religioso e social do islão, como comunidade religiosa encarregada por Deus para ser portadora do seu próprio sistema de valores para o mundo através da jihad (“guerra santa” ou “luta sagrada”), explica o espantoso sucesso das gerações muçulmanas iniciais.
No espaço de um ano após a morte do profeta, em 632 d.C., elas dominavam grande parte do globo desde a Espanha, passando pela Ásia Central, até à Índia, formando o novo império Árabe-Muçulmano.
O período das conquistas islâmicas e do construir do império marca a primeira fase da expansão do islão como religião. O igualitarismo essencial do islão para com a comunidade dos crentes e a discriminação oficial contra os seguidores de outras religiões ganhou rapidamente adeptos.
Aos judeus e cristãos foi assegurado um estatuto especial, como comunidades possuidoras de escrituras e, portanto, foi-lhes concedida autonomia religiosa, contrariamente aos “pagãos” que deveriam aceitar o islão ou morrer. O mesmo estatuto foi mais tarde estendido aos adeptos zoroastras e hindus.
A expansão massiva do islão deu-se depois do século XII e foi levada a cabo pelos sufis (os principais responsáveis pela difusão do islão na Índia, Ásia Central, Turquia e África subsaariana).
Outro factor a ter em conta na expansão do islão foi a influência dos comerciantes muçulmanos, que não o introduziram bastante cedo na costa oriental e sul da Índia, mas também se revelaram como os principais agentes catalisadores nas conversões na Indonésia, Malásia e China.
Esta variedade de raças e culturas (a população muçulmana mundial é de aproximadamente 600 milhões de pessoas) que abraçam o islão, produziu importantes diferenças internas em todos os segmentos da sociedade muçulmana; no entanto, elas estão unidas por uma fé comum e um sentido de pertença a uma única comunidade.
Com a perda de poder político durante o período do colonialismo ocidental nos séculos XIX e XX, o conceito de comunidade islâmica, em vez de se enfraquecer tornou-se mais forte e ajudou vários povos muçulmanos na sua luta para ganhar liberdade política e soberania nos meados do século XX.
Fontes do pensamento islâmico

A doutrina, lei e pensamento islâmicos em geral estão baseados em quatro fontes:
O Alcorão (a lei sagrada), a sunna (as tradições), o idjmã (o consenso da comunidade) e a ijtihad (o pensamento individual).
O Alcorão (literalmente “leitura” ou “recitação”) é a palavra de Deus revelada a Maomé pelo anjo Gabriel. Dividido em 114 capítulos de linguagem desigual, é a fonte fundamental do ensinamento islâmico. Os capítulos revelados em Medina, num período posterior ao percurso do profeta, referem-se à legislação social e a princípios jurídicos e morais para a constituição e ordenação da comunidade.
A palavra sunna foi usada pelos árabes pré-islâmicos para referir a sua lei tribal ou comum; no islão passou a ter o significado de exemplo do profeta, isto é, as suas palavras e acções. Os hadiths (uma colecção de pensamentos atribuídos ao profeta) fornecem os meios pelos quais as palavras e as acções de Maomé são dados a conhecer. Seis destas colecções, compiladas no século IX, passaram a ser olhadas como especialmente verdadeiras e importantes pelo maior grupo do islão, os sunitas (outro grande grupo, os xiitas, tem os seus próprios hadiths).
A doutrina do idjmã foi iniciada no século VIII para unificar a teoria e prática legais, bem como para suprimir diferenças individuais e regionais de opinião. Desde o século VIII, o idjmã foi um princípio de rigidez de pensamento; questões nas quais o consenso foi atingido na prática foram consideradas fechadas, e interrogações substanciais das mesmas proibidas. As interpretações aceites do Alcorão e o conteúdo actual da sunna, todos convergem finalmente no idjmã.
O ijtihad, que significa esforçar-se ou exercitar-se pessoalmente, foi necessário para encontrar a solução legal ou doutrinal para um novo problema. No primeiro período do islão, porque o ijtihad tomou a forma de opinião individual, havia uma abundância de opiniões conflituais e caóticas. No século VIII, o ijtihad foi substituído pelo qiyâs (raciocínio por analogia estrita), um procedimento formal de dedução baseado nos textos do Alcorão e dos hadiths. A transformação do idjmã num mecanismo de conservação e aceitação de um corpo definitivo de hadiths virtualmente fechou a fonte de ijtihad. Contudo, alguns pensadores muçulmanos continuaram a reivindicar o direito de novos ijtihads. Estes e os reformadores dos séculos XVIII e XIX ampliaram a aceitação deste princípio.
Próximo texto
Islão: Doutrina e vida em sociedade (a publicar sábado, 22).
Carlos Pinto de Abreu é advogado; José Verdelho é jurista. O texto foi actualizado a partir da versão original, elaborada em 1987 para o XXIII Encontro Europeu de Universitários e publicado depois numa compilação de artigos em memória do Padre Joaquim António de Aguiar que foi director do Colégio Universitário Pio XII: “A Difícil Contemporaneidade da Concepção do Direito no Islão” in Educação e Cidadania, Lisboa, Almedina, 2017, pp. 163 a 200. A edição final e alguns títulos e subtítulos são do 7MARGENS.