
Um estudo concluiu que o sistema de certificação casher até agora em vigor em Israel estava repleto de ineficiências e processos não transparentes que custavam aos contribuintes cerca de 3,5 milhões de euros por ano. Foto © Rodnae/Pexels.
Pode o processo de certificação da comida casher ajudar a fazer uma revolução nas relações entre Estado e religião? O Governo de Israel iniciou a primeira fase de um programa para liberalizar o sistema de certificação alimentar casher e há quem considere que, além de baixar o custo de vida, a mudança pode retirar também o poder centralizado a uma minoria religiosa, aumentando a liberdade religiosa.
Iniciado a 2 de Janeiro, este programa pode ser visto como uma revolução silenciosa, diz o La Croix International.
Para já, esta primeira fase prevê que qualquer restaurante, loja de comida e fábrica possa escolher entre os vários conselhos religiosos existentes no país que fazem a supervisão kashrut, em vez de poder utilizar apenas o seu conselho local. Quando, no início de 2023, entrar em vigor a segunda fase, a certificação poderá passar a ser feita por agências privadas – neste momento, ela só pode ser feita pelo Rabinato-Chefe de Israel, acrescenta o Times of Israel.
De qualquer modo, todas essas agências serão obrigadas a manter os padrões religiosos estabelecidos pelo Rabinato-Chefe. Ao mesmo tempo, deverão demonstrar a sua viabilidade financeira e tornar públicos os padrões religiosos que mantêm na sua certificação.
O programa foi lançado pelo ministro dos Assuntos Religiosos, Matan Kahana, próximo do primeiro-ministro Naftali Bennett. Tendo feito grande parte da sua carreira no exército, recorda o La Croix, o ministro tem argumentado, contra os que se opõem à medida, que é um judeu ortodoxo que segue uma visão rigorosa do judaísmo. Citado no mesmo jornal, Tomer Persico, investigador do Instituto Hartman de Estudos Judaicos, considera entretanto a medida como um “passo em frente para aqueles que querem mais liberdade religiosa em Israel”.
A economia é o outro lado da questão. O ministro diz que o programa impulsionará a concorrência e melhorará o kashrut. De facto, segundo o La Croix, a supervisão casher ascende a mais de 800 milhões de euros por ano. Com a concorrência e a atribuição a uma autoridade local ou mais próxima, poderão ser poupados milhões de shekels por ano.
Num estudo recente, citado pelo Times of Israel, o Instituto Israel Democrático verificava que o sistema de certificação casher até agora em vigor em Israel, estava repleto de ineficiências e processos não transparentes que estavam a custar aos contribuintes cerca de 3,5 milhões de euros por ano.
(Casher – lê-se “cashér” – é o termo usado desde há séculos pelos judeus sefarditas, da Península Ibérica; deve ser, por isso, o termo utilizado em português. Kosher – “kósher” – é usado nos países anglo-saxónicos.)
Matan Kahana defendeu a mudança por ele promovida. Na sua página no Facebook, escreveu que a mudança permitirá um kashrut melhor, mais organizado e mais supervisionado. A opção de poder escolher em todo o país e numa autoridade mais próxima levará a “um serviço melhor, mais sério, mais meticuloso e mais conveniente para os proprietários de empresas”. Além disso, defendeu ainda o ministro, a reforma acabará por fortalecer o Rabino-Chefe, uma vez que se tornaria “um órgão de supervisão com autoridade robusta”.
A reforma “faz todo o sentido”, defende Isaac Assor, oficiante dos serviços religiosos na Sinagoga Shaaré Tikva (Portas da Esperança), em Lisboa. Explicando que a certificação casher é “muito recente” – por exemplo, há 70 ou 80 anos, ela não era necessária entre os judeus de Marrocos, recorda –, Assor diz que é a centralização do poder de certificação que está em causa.
Em qualquer outro sítio do mundo, lembra, a certificação é feita pelos rabis locais – como sucede com os de Lisboa, Porto e Belmonte, por exemplo. “Não vejo maior autoridade nos rabinatos-chefe de Israel do que nos locais”, diz Isaac Assor ao 7MARGENS. “Os rabinos locais não têm de pedir autorização ao rabinato de Israel e o facto de se dar esse poder de certificação aos locais traduz uma liberalização evidente”, diz.
A oposição maior à reforma tem vindo de uma minoria de judeus ultra-ortodoxos. Mas os dois rabinatos-chefe de Israel, sefardita e asquenaze, lamentaram também, em Outubro, a aprovação do projecto pelo Comité dos Serviços Religiosos do Knesset (Parlamento): o programa leva não só a uma flexibilização das regras alimentares, mas pode prejudicar a coesão do Estado e o seu carácter claramente judeu, defendiam, numa declaração conjunta.
Por outro lado, a reforma pode ter um tempo limitado para ser posta em prática: o actual Governo resulta de uma frágil coligação parlamentar que não inclui nenhum partido ultra-ortodoxo. E, se o Governo não resistir, esse quadro pode mudar e o programa de alteração ser posto em causa.