“(…) Ce sera un Japon inconnu – un autre rivage. Et sur les îles subtropicales de Yaeyama, avec les très sages (Monsieur et Madame Itô), la naissance d’une nouvelle géométrie amicale. Une confiance. À l’autre bout du monde et au delà du langage, Simon [un psychanalyste de Paris] en fait l’expérience sensible: la rencontre avec soi passe par la rencontre avec l’autre.”[1]
(Jeanne Benameur,
La Patience des Traces, 2022, Actes Sud)

Trajes tradicionais junto a templo xintoísta em Tóquio. Foto © Teresa Vasconcelos
Fui brindada, sem qualquer expectativa de que tal me pudesse acontecer, com uma visita de estudo a creches e jardins de infância no Japão, sobretudo de alguns edifícios construídos de raiz (ou adaptados) pelo famoso arquiteto Takaharu Tezuca, Prémio UNESCO para construções escolares. Fiz esta memorável viagem a convite da direção da APEI (Associação dos Profissionais de Educação de Infância).
Partilho uma experiência que foi uma lição de vida, diria mesmo uma espécie de “peregrinação”. Não sabia exatamente o que me esperava e esta viagem de quase três semanas foi um belo teste à minha capacidade de adaptação, mas sem dúvida a concretização de um sonho que alimentava há muito tempo. Veio na melhor altura: os sucessivos confinamentos originados pela pandemia e a perda dolorosa de pessoas muito queridas na minha família e no círculo de amigos mantinha o meu quotidiano “seco” e tortuoso, confesso. Precisava de ar puro, de uma mudança regeneradora. A Vida – e, sem a menor dúvida, a solidariedade e atenção dos meus colegas – ofereceu-me este presente que agarrei com as duas mãos.
Que experiência de Deus fiz no Japão, nesse país do Sol Nascente? Vou tentar ir refletindo sobre isso ao longo destas linhas.
Éramos doze, bem diferentes entre si. Foi essa a riqueza. Uns/umas esfuziantes, alegres, comentando tudo e mais alguma coisa; outros/as mais discretos, atentos e observadores, introspetivos, meditativos. Procurei situar-me neste segundo grupo. Era uma sénior, reformada, sem a necessidade de ligar tudo ao meu contexto profissional. Ia à procura de sentido.

Por azar ou por sorte, dez dias antes da partida, torci um pé à entrada da minha garagem. Acho que o desejo de ficar bem, apenas com “mobilidade reduzida”, me fez melhorar mais depressa para não ter de desistir da viagem. Os mais jovens revezavam-se para me dar o braço sobretudo quando o terreno ou o piso das ruas era acidentado ou menos iluminado – o Japão entrou já numa poupança significativa da energia pública –, correndo o risco de tropeçar novamente, o que aconteceu. Uma boa lição para alguém muito autossuficiente e que na generalidade não gosta de estar sempre a pedir ajuda. Uma aprendizagem da vulnerabilidade. Deixei-me ser cuidada. Foi muito bom. E a busca de sentido também é feita de tropeções, pensei.
Na mochila levava o livro de que usei a citação em epígrafe, que uma amiga me oferecera. Em busca de mim desejava o encontro com o Outro, um Outro bem diferente. Fui lendo esse companheiro-livro sobretudo nas noites longas e acordadas por causa do jet-lag ao chegar ao Japão.
Lembro que o arquipélago do Japão tem uma área de 377.915 Km quadrados e 125,7 milhões de habitantes distribuídos por cinco ilhas principais e 1.848 ilhas mais pequenas. O arquipélago estende-se de norte a sul, sendo que as ilhas que se situam mais a sul já têm clima subtropical e ficam não longe de Taiwan. A norte, a Rússia, China e Coreias, com o mar do Japão e o mar da China Oriental a estabelecer fronteiras marítimas. Tóquio fica na ilha de Honshu. Esta cidade tem nada mais nada menos do que 13,96 milhões de habitantes. Uma imensidão se nos lembrarmos que em Portugal somos, no todo, pouco mais de 10,3 milhões. Toda a rede de transportes é extremamente eficiente, incluindo o metro, os comboios de alta velocidade, o transporte entre ilhas. Viajámos de Tóquio para o sul. No Japão das grandes cidades a pontualidade é ao milímetro. Os japoneses têm de ser necessariamente pontuais e disciplinados. Um bom desafio para os nossos sistemáticos atrasos e tolerâncias de dez minutos. Se queríamos conhecer o Japão tínhamos de ser disciplinados também.
Como sabemos, muitas das ilhas são vulcânicas, grande parte montanhosas e verdes, sujeitas a regulares sismos e tsunamis. O verde fértil estende-se até às praias de mar azul turquesa, sobretudo no sul. Viajámos entre Tóquio e Quioto – antiga capital e a cidade dos templos… – e depois Kobe. Em seguida voámos para as ilhas de Yakushima, Okinawa e a pequena ilha de Zamami (arquipélago de Kerama), onde finalmente mergulhámos no Pacífico.

O Japão é fascinante e belo, muito belo. A diversidade de experiências e de geografias cruzam-se numa tensão – nem sempre fácil – entre tradição e modernidade. O respeito e culto pela terra leva este país a uma sensibilidade ecológica muito anterior à crise climática que hoje vivemos. O investimento na saúde prende-se com o respeito pelo ser humano e especificamente por si próprio/a, através de práticas de milenar medicina tradicional e alimentação saudável e frugal. O culto da beleza está ligado a esta profunda atenção à terra: os jardins, mesmo os mais pequenos, têm pontes, muita água, muito verde. A sobriedade da habitação tradicional japonesa, as madeiras, as portas de correr, o uso do chão (por isso se tiram os sapatos à entrada de qualquer casa), o conforto simples, o mobiliário minimalista. Ao contrário, nos templos encontramos uma pujança festiva, complexa e caprichosa, bem mais “enfeitada”.
O respeito e a ética permeiam as interações entre as pessoas, nomeadamente dentro dos respectivos grupos de pertença. Intuí que de todas estas dimensões emana uma profunda espiritualidade que se realiza predominantemente na prática do Xintoísmo (shintô, “caminho dos deuses” e tô, “estudo”) e do budismo zen [2]. O budismo ajuda-nos a entender esta ligação visceral do ser humano com a natureza e com o culto da família, nomeadamente dos antepassados [3]. Entendemos que, apesar de o Japão ter uma população envelhecida – tal como nós – o cuidado e respeito pelos mais velhos esteja na essência da sua cultura. Os velhos não são “descartáveis”. São a alma da família. As crianças são realmente uma dádiva da vida e são alvo de um carinho e cuidado muito grandes. Por isso creches e jardins de infância estão a emergir, todos eles de uma grande qualidade. Relembro que, na tradição familiar japonesa, as mães ficavam em casa com as crianças antes da entrada na escolaridade obrigatória. Esta organização familiar, que em parte se mantém até aos nossos dias, está a evoluir para modos de vida mais “ocidentais”. Mas é indicativa do longo caminho que as mulheres japonesas terão de fazer na conquista da paridade com os homens e no direito à realização pessoal pelo trabalho. Uma contradição bem japonesa numa sociedade altamente tecnológica e de dedicação completa ao trabalho, aos chefes… e ao imperador, não abandonando as tradições.
A Tóquio dos arranha-céus, da vida prolongada dia e noite, do constante movimento, de alguma stress e compressão nas idas e vindas de comboio para a periferia ou para as cidades satélite. Quer no início do dia, quer no regresso pude observar o cansaço de muitos passageiros que dormitavam no metro ou se concentravam nos seus telemóveis, alheando-se do que se passava à sua volta; das filas para tudo, no meio de uma extrema cortesia, por vezes quase mecânica. Toda a organização de Tóquio está orientada para a massa de gente que entra e sai na cidade, enche as ruas a qualquer hora do dia – percursos implícitos para a esquerda ou direita para as pessoas circularem nos dois sentidos, filas sempre respeitadas, sentidos assinalados no metro para deslocação rápida, 8 a 10 horas de trabalho por dia.

Daí podermos ter sentido nos jovens alguma desadaptação, face a uma escola muito exigente e competitiva de par com os modos de vida familiar bem tradicionais. Numa das noites fomos ao centro de Tóquio, uma espécie de Picadilly Circus em Londres ou Times Square em Nova Iorque. Jovens completamente alternativos aos adultos mais tradicionais ou mesmo aos yuppies (young urban professionals). Cabelos pintados de loiro, pins pelo corpo, madeixas roxas, roupa bem ocidental, em magotes, barulhentos, não contidos nos abraços e beijos, gritinhos porque ia passar uma conhecida estrela pop que acenava de um carro para depois ir assinar os discos numa loja… Alguns desses jovens bem andrógenos. Pareceu-me esta uma demonstração da necessidade de escape a uma sociedade muito contida e a uma escola ordenada, disciplinada, e seletiva no acesso à universidade. Em diversas circunstâncias vi os jovens em visitas de estudo, chefiados pelo professor, em perfeita fila nos seus uniformes diferenciados em função das escolas. Mas numa capital organizada ao milímetro como é Tóquio, esta evidência no centro da colossal cidade era expressiva. Sabemos que o último estudo da OCDE revela de modo preocupante que os jovens japoneses não se consideram muito felizes… falando em busca de sentido…
O mesmo não acontece com as crianças antes de atingirem o nível da escolaridade obrigatória. As creches e jardins de infância são espaços de jogo gratuito, de movimentação ao ar livre, de uma grande espontaneidade, de uma subtil beleza, sempre no meio de espaços verdes. As creches repousantes, com adultos disponíveis, refeições muito simples, muitas canções com gestos e… sim, um piano em cada sala. A educação musical faz-se quase desde o berço. Observei crianças felizes e adultos serenos. Para uma especialista neste campo foi uma revelação já que a tradição é que os grupos de crianças resolvam entre si os eventuais problemas; o adulto atento mas menos interventivo, se compararmos com os nossos professores.
Um exemplo da arquitetura de Tezuca no jardim de infância Fuji Youchien:

A natureza (água, terra, plantas e árvores milenares) e a beleza que transparece em todos os pormenores – autonomia, jogo e muita atividade física, saudável vida de grupo –, a reutilização de recursos (não apenas da água mas de qualquer desperdício), uma construção circular de modo a que todas salas se possam abrir diretamente para a zona exterior. O teto, também circular e devidamente protegido, é utilizado para atividades ao ar livre, preservando as milenares árvores que emergem do solo. Vivemos a experiência de como o espaço pode ajudar à comunicação mas também à interiorização, ao silêncio e à calma.
E sempre, sempre, a beleza e o uso da luz, os vidros amplos a deixar que o exterior passe para o interior, a reutilização de desperdícios para criar arte com as crianças. Em qualquer espaço pedagógico há um piano: a musicalidade das crianças é estimulada desde as primeiras idades.
O “play park” também do Tezuca é um espaço de brincar informal que pode ser frequentado por mães e crianças até aos 3 anos de idade

Tivemos a oportunidade de ir ao teatro kabuki, a “arte de cantar e dançar”: ka – canto; bu – dança; ki – habilidade) no Grand Kabuki, no centro da cidade. Esta forma de teatro japonês (património cultural imaterial da humanidade) remonta aos começos do século XVII. Eram parodiados temas sociais e religiosos com danças de grande sensualidade. Os seus atores usam um tipo de caracterização muito elaborado, lembrando máscaras, e são atores rapazes que interpretam os papéis femininos. Ora a informação que obtive indicou-me que este tipo de teatro foi, aliás, fundado por uma mulher: Izumo no Okuni. Apesar de não entendermos a língua cantada, antes entoada com sons (trinados) bem peculiares, esta foi mais uma experiência de observar e tentar entender outras linguagens expressivas. Grande beleza dos fatos e da encenação, com músicos tradicionais presentes no palco. O não entender as palavras levou-me a uma meditação muito zen, com fundo sonoro e repetitivo, por vezes monocórdico, uma revelação. O também conhecido teatro Noh (ou Nô) é uma expressão artística que aborda temas de caráter espiritual, “dramas líricos”. É um teatro “mais aristocrático”, com origens em coreografias sagradas e danças com carácter ritual vindas do Xintoísmo.
Um pequena nota que me pareceu muito importante: não vimos caixotes do lixo nas ruas. A lógica que prevalece é a de que o lixo que alguém faz é de sua inteira responsabilidade. Uma questão de respeito. Assim as pessoas andam com saquinhos nas carteiras ou mochilas, recolhem o lixo que fazem ao longo do dia (embalagens, cascas de fruta, lenços de papel usados, etc.) e, já em casa, usam os contentores respetivos, separando bem o lixo. Uma questão de educação desde as primeiras idades… E não podemos esquecer o facto que todos conhecemos: ninguém entra em casa ou numa escola com sapatos vindos da rua…
Finalmente fomos ao templo, o maior templo de Tóquio, Sensô-ji, num dos bairros bem antigos e emergindo de ruelas estreitas. Um tremendo contraste. Muita tradição, muito espetáculo, muita “devoção” com a qual me não identifico. Também inúmeros turistas a invadir e a fotografar tudo. Muito folclore. Ao redor, uma feira de lojas e lojinhas, comércio. Jovens casais vestidos “a preceito” nos seus trajes tradicionais. Um certo anticlímax depois das escolas de Tezuca. O templo é dedicado à Bodhisatta da Compaixão, Kannon (a “Guan Yin” chinesa). Calma, emanando tranquilidade. Gosto dessa Bodhisatta. Muita alegria e intensidade naquele desfilar discreto de gente. A passagem de quimonos era fascinante. Muito belos… as fotografias com os telemóveis interrompendo tudo.

À entrada do templo, além de lavarem cuidadosamente as mãos, as pessoas purificam-se numa espécie de grande braseiro onde ardem paus de incenso, num lindo gesto de mãos de trazer para si o fumo. Eis a foto de uma de nós a purificar-se com o incenso:

Procurava não perder o grupo mas simultaneamente punha-me à distância, evitando tanto movimento. Parei junto à estátua da Bodhisatta da Compaixão. Inspira-me a serenidade desta mulher compassiva. Não podia deixar de me lembrar da Pietà de Miguel Ângelo em Roma, uma das mais belas estátuas que tenho contemplado no “nosso” ocidente.
Teresa Vasconcelos é professora do Ensino Superior (aposentada) e integra o Movimento do Graal. Contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com
Notas
[1] Tradução: “Será um Japão desconhecido – uma outra margem. E nas ilhas subtropicais de Yaeyama (Iaeiama, em português), com grandes sábios (o Senhor e a Senhora Itô), o nascimento de uma nova geometria de amizade. Uma confiança. No outro lado do mundo e para além da linguagem, Simon [um psicanalista parisiense], faz uma experiência delicada : o encontro consigo mesmo passa pelo encontro com o outro” (in: Jeanne Benameur La Patience des Traces, 2022 Actes Sud).
[2] “O xintoísmo incorpora práticas espirituais derivadas de diversas tradições pré-históricas japonesas, locais e regionais, porém não surgiu como instituição religiosa formalmente centralizada até a chegada do budismo, confucionismo e taoísmo no país, a partir do século VI. (…) O kami (essência, espírito, divindade) e as pessoas não são separados, mas existem num mesmo mundo e partilham de sua complexidade inter-relacionada”. (in: Wikipédia).
[3] O culto budista dos antepassados estende-se “na prática do zazen (literalmente, “meditar sentado”), tipo de meditação contemplativa que visa levar o praticante à “experiência direta da realidade” através da observação da própria mente.” (ibid.)