
Padre João Resina: “O Senhor que nos ensinou a rezar, nos ensinou também a viver ao pé dos pobres, a acompanhar os pecadores, a anunciar sem medo as exigências do Reino“. Foto © Enric Vives-Rubio, cedida pelo autor
O título desta memória é “roubado” à entrevista feita por António Marujo ao padre João Resina Rodrigues, para o jornal Público em Abril de 2007.
Nesta quinta-feira, 3 de junho, completam-se 11 anos que o Padre João, como era conhecido entre aqueles que mais de perto tinham o privilégio de com ele lidar, partiu para Deus.
Por coincidência de datas, em 3 de junho de 2010 a Igreja celebrava, tal como hoje, a solenidade do Corpo de Cristo.
Fazendo hoje a sua memória começamos por citar do texto “Corpo e Sangue de Cristo”, retirado da última publicação de textos temáticos, da sua autoria, A Palavra para os Homens (Ed. Paulus), 2012: “É ainda importante que a nossa vivência da Eucaristia nos não coloque numa religião puramente intimista. Sem dúvida, a oração-contemplação é uma componente essencial da nossa Fé e a comunhão na Eucaristia tem de ser um momento forte de oração. Mas importa não esquecer que o Senhor que nos ensinou a rezar, nos ensinou também a viver ao pé dos pobres, a acompanhar os pecadores, a anunciar sem medo as exigências do Reino, a aceitar a cruz. Participar da Ceia Pascal é receber o convite para estas coisas todas”.
Neste texto, cujo objetivo é fazer a memória dos 11 anos passados depois que o Padre João nos deixou, impõe-se uma explicação acerca do título escolhido.
João Manuel Resina Rodrigues, nascido em 5 de outubro de 1930, licenciou-se em engenharia químico-industrial no Instituto Superior Técnico (IST) em 1953. Só posteriormente, em 1959, completou o curso de teologia e foi ordenado padre no patriarcado de Lisboa nesse mesmo ano. Três anos depois licenciou-se em filosofia em Lovaina, obtendo o grau de doutoramento em Filosofia das Ciências em 1965. Foi professor associado no Departamento de Física do IST em Lisboa, entre 1963-2000, desenvolvendo investigação em Física Molecular no Centro de Física da Matéria Condensada, no período 1963-2000, sob a direção do Prof. Doutor Manuel Alves Marques.
Exerceu simultaneamente trabalho pastoral entre 1959 e 2010, nas paróquias de Belém, S. Nicolau, Moscavide, Santa Isabel, Cruz Quebrada e Campo Grande e nas Capelas do Rato, no Centro Comercial das amoreiras e de N. Sr.ª das Dores.
Como facilmente se reconhece por este pequeno resumo do seu curriculum, o Padre João acumulou ao longo da sua vida o múnus sacerdotal com a investigação e as aulas de física quântica.
“Corta a direito no que diz, critica a instituição eclesiástica, acredita na originalidade profunda de Jesus, não vê que a física que sabe coloque problemas à fé que professa.” É com esta frase forte que António Marujo introduz a entrevista que refiro no início desta memória, seguindo-se imediatamente a primeira questão assim formulada:
– Um padre que ensinou física durante 30 anos sabe se, afinal, Deus não joga aos dados?
João Resina responde: Sou discípulo de Kant.
Ele diz que há três questões fundamentais: o que posso saber, o que devo fazer, o que me é lícito esperar.
E achou que a primeira depende da ciência. As más catequeses tiveram sempre a mania de misturar essa questão com a apologética. Kant achava que não, eu também.
Uma coisa é tentar compreender o universo. Para isso há a física e a biologia. Se quero saber se houve ou não big bang, se a vida evoluiu ou não, não pergunto à Bíblia, não pergunto à Igreja, que não tem competências nessa matéria.
A segunda questão é o que devo fazer, como se deve viver para se ser homem. Pergunto à história, às culturas, às religiões.
A terceira pergunta é o que me é lícito esperar, qual o sentido de fundo disto tudo. Aí, encontro a questão de Deus.
Em suma, questões relativas a como é feito este mundo são da ciência. O sentido da vida diz respeito à religião, à filosofia, às culturas. Nós aprendemos com todas as culturas. Eu, em particular, aprendi e acreditei em Jesus Cristo.
João Resina era acima de tudo um Homem de Fé. De uma fé inquebrantável em Cristo Jesus. De uma fé incarnada na vida de todos os dias, na vida dos irmãos. Na sua fé importava “não esquecer que o Senhor que nos ensinou a rezar, nos ensinou também a viver ao pé dos pobres, a acompanhar os pecadores, a anunciar sem medo as exigências do Reino, a aceitar a cruz. Participar da Ceia Pascal é receber o convite para estas coisas todas”, segundo as suas próprias palavras.
A melhor memória que podemos fazer do Padre João é usar palavras suas, cremos que até hoje inéditas, datadas de 15 de fevereiro de 2003 [quando estava iminente a invasão do Iraque pelos EUA].
“Sobre a Guerra e a Paz

Um dos jornais diários de Lisboa determinou que, no domingo passado, os padres iriam falar da paz e da guerra. Calei-me, em sinal de que não estou sujeito a essa jurisdição. Mas o tema é importante.
Em mais de metade dos casos, as nações, são governadas por homens maus. Que se apossaram do poder pela violência, pela mentira, pela fraude; ou porque foram conduzidos ao poder – eventualmente eleitos – por intervenção de grupos com todos esses defeitos. Grupos que, a seguir, lhes determinam ou, pelo menos, lhes condicionam a ação.
Não tenho dúvidas de que Osama bin-Laden e o conjunto dos terroristas são homens maus, que constituem perigo para o mundo. Não tenho dúvidas de que Saddam Hussein é um homem mau, que escraviza o seu povo e ameaça a paz. Não tenho dúvidas de que Eduardo dos Santos é um homem mau que faz sua a riqueza de Angola e deixa a população morrer à fome. Não tenho dúvidas de que G.W. Bush é um homem mau, que quer o poder e a riqueza para os EUA, mesmo que à custa do resto das nações.
Põe-se a questão de saber se é ou não conveniente que os EUA ataquem o Iraque, na suposição de que o Iraque apoia o terrorismo internacional e dispõe de armas de destruição maciça. Recorda-se que foi um erro que as nações civilizadas não tenham impedido a tempo a caminhada de Hitler, de Estaline e de vários outros ditadores.
Sou capaz de concordar que era importante impedir a progressão de Saddam Hussein. A minha dúvida é outra. Não reconheço o estofo moral de G. W. Bush. Não reconheço a bondade dos EUA.
Aceitarei que, havendo provas seguras, as Nações Unidas (não os EUA nem um clube a seu serviço) façam uma “guerra preventiva” contra o Iraque. Mesmo assim, seria a minha segunda opção. A primeira opção consistiria num novo pacto entre as Nações Unidas e as grandes religiões para combater a miséria.
O terrorismo e a vontade de guerrear o Ocidente dependem muito da miséria do Terceiro Mundo. O dinheiro que se vai gastar com a guerra poderia servir para criar muitas estruturas que combatessem a fome, a doença e a miséria dos povos pobres, que contribuíssem para a sua boa inserção na comunidade mundial. Uma acção em favor destes valores terá a médio e a longo prazo um efeito muito mais forte do que a destruição do Iraque e seus eventuais aliados.
Apelo ao Papa e aos bispos católicos, aos bispos ortodoxos, luteranos e anglicanos, aos chefes de todas as comunidades cristãs, aos responsáveis judeus e muçulmanos, a todos os homens que acreditam em Deus, a todos os homens de boa vontade – acreditem ou não acreditem em Deus – que se juntem com urgência para desencadear este processo. Que só é utópico para quem não acredita, nem em Deus, nem nos homens.
Sábado, 15 Fevereiro 2003
Padre João Resina”
Estas palavras, ditas à época, parecem hoje, passados 18 anos, uma verdadeira profecia do séc. XX, como sempre era a Palavra de João Resina.
Acompanhei o Padre João Resina, mais ou menos assiduamente, em diferentes fases da sua vida sacerdotal, das paróquias de Moscavide a Santa Isabel, da Cruz Quebrada ao Campo Grande, bem como de forma permanente nas capelas do Rato e do Centro Comercial das Amoreiras, atraído pela sua palavra que, tal como escreveu António Marujo, “levava tanta gente a atravessar a cidade de uma ponta à outra só para o ouvir e poder, depois, levar aquela folhinha para casa”.
O testo sobre a “Guerra e a Paz que reproduzo foi uma dessas folhinhas. Muitas outras deram origem a três volumes, reunidos a partir do pedido de todos aqueles que o ouviam. Estão assim publicados A Palavra no Tempo (ed. Multinova, 1995); A Palavra no Tempo II (ed. Entrelinhas 2006) – estes dois volumes com as homilias do Padre João seguindo as diferentes festas litúrgicas dos anos A, B e C. E, por último, uma coletânea de textos temáticos A Palavra para os Homens (ed. Paulus 2012), recolhidos essencialmente desde a sua ida para a Paróquia do Senhor Jesus dos Aflitos (Cruz Quebrada) até à sua partida para Deus em 2010.
João Resina era como referimos acima de tudo Um Homem de Fé.
Em 21-12-2008, no último domingo antes do Natal escreveu: “A Fé é a adesão a Deus. Envolve a inteligência – é preciso “saber” alguma coisa a respeito de Deus e ter “razões” para acreditar – mas não é homogénea a um simples conhecimento”.
Era assim a Fé do Padre João.
Fernando Gomes da Silva é engenheiro agrónomo.