
José Augusto Mourão há vinte anos, em Janeiro de 2001. Foto © Pedro Cunha, cedida pelo autor
Fazemos memória, nesta quarta-feira, 5 de maio, do décimo aniversário da partida para o Senhor de frei José Augusto Mourão op. Nascido em Lordelo, Vila Real, em 12 de junho de 1947, deixou-nos aos 64 anos.
Conheci Frei Mourão quando, há já muitos anos, comecei a participar nas eucaristias do Convento de S. Domingos de Lisboa, levado pelo meu amigo Luís de França, também ele frade dominicano, entretanto já desaparecido do meio de nós. Por essa época ainda a Igreja do Convento não existia e celebrávamos na biblioteca ou, por vezes, no hall de entrada do convento.
Ainda hoje recordo com saudade as homilias do padre José Mourão, cujo estilo formal e conteúdo podemos, hoje na sua ausência física, relembrar através dos inúmeros textos que felizmente nos deixou. Eram normalmente curtas e muito incisivas, num estilo literário por vezes um tanto difícil o que me levava sempre a ir, no final da celebração eucarística, pedir-lhe a folhinha que lhe tinha servido de base para as fazer.
Entre outras obras, publicou A visão de Túndalo: em torno da semiótica das Visões (ed. INIC); Sujeito, Paixão e Discurso. Trabalhos de Jesus (Vega); O fulgor é móvel – Em Torno da Obra de Maria Gabriela Llansol (Roma); A Palavra e o Espelho (Paulinas), Luz Desarmada (Prefácio) e Quem vigia o vento não semeia (Pedra Angular), que recolhem homilias ligadas ao calendário litúrgico.
Muito embora de uma riqueza espiritual e de uma profundidade teológica notáveis, não é normalmente pelas suas homilias que Frei Mourão é, frequentemente, lembrado. A sua poesia de uma riqueza espiritual e de uma harmonia extraordinárias, os cânticos de sua autoria adaptados a música “sacra”, constituem os seus mais conhecidos textos e ainda hoje enriquecem as celebrações litúrgicas dominicais no Convento dos Dominicanos de Lisboa. A coletânea O Nome e a Forma, apresentada e prefaciada pelo então padre José Tolentino Mendonça, outro notável contemporâneo poeta da Fé, reúne a sua poesia ao longo de 311 páginas, dividida em quatro capítulos: “Vazio Verde (o Nome)”, “Dizer Deus ao (Des)Abrigo do Nome”, “Declinações – O Nome e a Forma” e “O Chão da Palavra”, precedidos de um texto em prosa, também de sua autoria, de quatro páginas: “luz desarmada”.
Do prefácio de Tolentino Mendonça cito: “Como o próprio (José Augusto Mourão) explica, conduzido por «provocações e circunstâncias», foi, durante todos estes anos [estamos em 2009] escrevendo textos litúrgicos ou nessa atmosfera, que hoje constituem «um corpo, um tom, um ritmo, uma singularidade enunciativa» no contexto português. E acrescenta: “A profecia não tem apenas uma dicção ética e social. Ela formula-se também como estética. Na sua intransigente solidão, José Augusto Mourão tem representado o aguilhão e o vislumbre, o combate e a dança, pois é um lugar profético donde nos fala. Esperamos que este volume, que reúne as suas composições, possa contribuir para a renovação litúrgica e espiritual no espaço católico e inscreva o seu autor no cimeiro posto criativo a que tem direito”.
Considerando de inteira e total justiça esta “profecia” do atual cardeal Tolentino, deixo aqui um dos poemas de Frei Mourão que entendo, bem se lhe adequa:
REZAR
Deus nós devoramos o tempo,
o espaço e o conhecimento
quais vampiros
em nenhum lugar da cidade te encontramos
e rezar-te é ainda reduzir-te
ao pão da nossa saciedade
e à nossa fome
Deus, nós procuramos-te
como se procura a água e o pão:
cultiva os nossos desertos,
a nossa procura e a nossa perda,
as nossas malhas de ilusão
eis-nos diante de ti
e em face uns dos outros:
ficou-nos o resto da partilha,
os caminhos da errância e da solidão
Deus da palavra e da promessa,
dá ao nosso desejo a graça
de se querer para além da sua imagem
e da clausura que o arme em circo
dá ao nosso desejo a graça de se tornar fluxo, rio, exílio
ou vaga de palavras
que nenhum lugar codifique
ou territorialize
Deus, como nós nómada,
que a tua presença se realize de lugar em lugar,
de estação em estação
e que a tua palavra se enraíze
tu que és a palavra e a promessa
realizadas em Jesus e no Espírito
e nos fazes cantar
A palavra era, para Frei Mourão, um instrumento essencial da celebração litúrgica pelo que esta memória ficaria incompleta sem alguma citação da sua palavra.
Ao acaso, de Luz Desarmada (Prefácio, 2006) que recolhe algumas das suas homilias, retiro dois excertos referentes à parábola do Bom Samaritano: “A parábola seleciona entre os possíveis: o estrangeiro, o herético, o marginal, mas nem todos os estrangeiros, heréticos e marginais se comportam automaticamente como «bons samaritanos». À questão a parábola responde com um impossível a dizer, ou pelo menos a predizer: não é nunca aquilo que esperávamos. Podíamos esperar mais caridade por parte do sacerdote e do levita, não da parte dum Samaritano relativamente a um Judeu. Um não saber fundador lembra que não há encontro programável para a palavra que atravessa o corpo e o impulsiona à compaixão, quer dizer, o fazer caritativo que é nunca um saber-fazer. Encontrar não é reconhecer: é mesmo a prova do não-reconhecível, o falhanço do mecanismo de recognição. A parábola não pode dizer quem é o meu próximo, não pode dizer senão quem ele não é e só após o encontro. …
O Judeu foi despojado dos vestidos e riquezas e é a esta queda da imagem social que o passante pode ou não pode responder. O padre e o levita que se reduzem aqui à sua função, veem o ferido, mas nenhuma palavra atravessa o seu fantasma, enquanto que o corpo do samaritano é surpreendido por uma palavra que atravessa o seu corpo e o faz desviar-se para agir. …
Por uma curiosa coincidência, este dia 5 de Maio é o dia da língua portuguesa, essa que Frei Mourão tão bem cultivou, tanto em prosa como em verso, até ao limite.
Fernando Gomes da Silva é engenheiro agrónomo