Mais do que “resolver a ordenação (clericalização) de mulheres” ou a obrigação do celibato, mais do que “apertar as regras de seleção dos clérigos, solteiros ou casados, o catolicismo deve sobretudo despojar-se “de tudo o que não tem fundamento evangélico e estimular-se na experiência das comunidades de base, desclericalizadas. Esta é a reflexão de José Veiga Torres, professor universitário e autor do livro Desafio aos Cristãos e a outras gentes – da “condição humana” para a vocação humana.
Apresentando-se como “um exilado das Igrejas, que quer seguir o Caminho e ‘caminhar junto’, este é o seu contributo, enviado para a diocese de Coimbra, em resposta à maior auscultação alguma vez feita à escala planetária, lançada pelo Papa Francisco, para preparar a assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023. Esse coro imenso de vozes não pode ser silenciado, reduzido, esquecido, maltratado. O Espírito sopra onde quer e os contributos dos grupos que se formaram para ouvir o que o Espírito lhes quis dizer são o fruto maduro da sinodalidade. O 7MARGENS publica alguns desses contributos, estando aberto a considerar a publicação de outros que queiram enviar-nos.

Praça de S. Pedro, no Vaticano. Foto © Sean Ang | Unsplash
1 – Esta é a participação de um cristão que se excluiu, voluntária e conscientemente, das instituições eclesiásticas, por razões que, em consciência, entende serem exigências evangélicas, sem que por isso tenha deixado de ter a «Paixão partilhada pela missão comum de evangelização» (Documento Preparatório, nº 14).
2 – Por essas mesmas razões, manifesta a sua alegria pelo convite que o Papa Francisco fez a quantos queiram participar na preparação do Sínodo de 2023, particularmente, porque «todos estão convidados a falar com coragem e parrésia, integrando liberdade, verdade e caridade», em «estilo comunicativo livre e autêntico e sem ambiguidades nem oportunismos» (D.P. – Documento Preparatório, nº 30, III – Tomar a Palavra). Sinto-me, assim, chamado a participar com o meu testemunho.
3 – O objetivo do Sínodo corresponde aos mais profundos anseios dos cristãos. «Não consiste em produzir documentos», mas em «fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florescer a esperança, estimular confiança, faixar feridas, entrançar relações, ressuscitar uma aurora de esperança, aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo, que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos» (D.P. nº32). Por outras palavras, encontrar «novas linguagens da fé e renovados percursos», «encontrar, na provação, as razões para voltar a fundar o caminho da vida cristã eclesial» (D.P. nº 7), «imaginar um futuro diferente para a Igreja e para as suas instituições» (D.P. nº 9). «A sinodalidade é muito mais que a celebração de encontros eclesiais…ou uma questão de simples administração interna da Igreja», «indica o específico modus vivendi et operandi da Igreja» (D.P. nº 10). É «viver um processo eclesial participativo e inclusivo de cada um e particularmente dos que se encontram à margem» (D.P. nº 2).
4 – Retenho, particularmente, o objetivo de «encontrar as razões para voltar a fundar o caminho da vida cristã eclesial», «imaginar um futuro diferente para a Igreja e para as suas instituições». Porque há a consciência de que as instituições da Igreja se têm desviado do “Caminho” e que é a sua conversão que nos exige participar no Sínodo.
5 – Estes objetivos devem ser consequência da sentida e informal Carta ao Povo de Deus do Papa Francisco ( de 20 de agosto de 2018), em que, «com vergonha e arrependimento», ele dizia: «é impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus», acrescentando que «toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o Povo de Deus, construímos comunidades, planos, ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vida. Isto se manifesta claramente num modo anómalo de entender a autoridade na Igreja…como é o clericalismo, aquela atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas tende, também, a diminuir e a subestimar a graça batismal»

6 – Encontro nestas palavras do Papa Francisco as razões objetivas que se me impuseram à consciência para romper com as instituições eclesiásticas, após décadas de plena entrega nelas, em boa fé e boa vontade. Por um lado, a “anulação da personalidade” e, por outro lado, o escândalo da incoerência dessas instituições, confrontadas com o testemunho de Jesus e dos Apóstolos, que são o fundamento da fé, e da «paixão…de evangelização». Ressalvo o pressuposto da boa fé das pessoas, mau grado as suas atitudes.
7 – Quatro testemunhos de Jesus e do Apóstolo Paulo dominam o meu espírito: 1) – «sabeis como aqueles que se dizem governadores…exercem a sua autoridade, mas entre vós não deverá ser assim» (Mc.10,42) – 2) «quanto a vós, nunca vos deixeis tratar por mestre, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos. Na terra não chameis “padre” a ninguém, pois um só é o vosso Pai, aquele que está no Céu» (Mt.23,9). 3) – Jesus, sendo de «condição divina…esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo…apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, e tornando-se obediente até à morte» (Ph. 2, 6-9). 4) – «Deus escolheu o que é loucura no mundo, para confundir os sábios, escolheu o que é fraqueza no mundo para confundir o que é forte, e aquilo que o mundo despreza, acha vil e diz que não tem valor» (1Co.11,27)
8 – Assumo a loucura de pensar, que se cremos em Jesus e no testemunho dos Apóstolos, assim expresso, não podemos acreditar que o clericalismo eclesiástico, desde que se iniciou, possa testemunhar aquelas exigências de Jesus, assumindo a condição de servo, julgado louco, samaritano, crucificado e ressuscitado.
9 – Jesus, os Apóstolos e as comunidades originárias convertiam, sem qualquer poder, sem sabedoria mundana, sem pompa, sem especulações teológicas, sem cânones…sem templos, sem altares, sem ministros sacerdotes (cf. Minúcio Félix). Convertiam com o testemunho de uma fé despojada de especulações e de rituais pomposos e estandardizados, sem se sacralizar, nem sacralizar as coisas.
10 – A primeira indicação que o Documento Preparatório nos solicita para se voltar a fundar o caminho da vida cristã eclesial é, «fazer memória do modo como o Espírito orientou o caminho da Igreja ao longo da história e como hoje nos chama a ser, juntos, testemunhas do amor de Deus» (D.P. nº 2).
11 – O «fazer memória» remete-nos, necessariamente, para os critérios factuais do Caminho e dos seus descaminhos. Remete-nos para os tempos originários em que a sinodalidade era o modo normal de aprendizagem do viver cristão, não hegemónico, comunitário, em que qualquer cristão, sem exclusão, podia “profetizar” (1Co.14,31).
12 – O «fazer memória», que respeite o que a ciência histórica mais rigorosa nos oferece hoje, (cf. as investigações, incontestadas, por exemplo, de Marie-Françoise Baslez e de Alexandre Faivre) permite-nos distinguir três tempos no Caminho cristão: o originário, o apostólico e o eclesiástico, e duas tradições, a apostólica originária, e a eclesiástica, aquela sob o testemunho apostólico, esta sob o domínio hegemónico da hierarquia eclesiástica (clerical).

13 – O tempo originário é o do Evangelho como acontecimento revelador: Jesus entre nós, que sendo de «condição divina…esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo… apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, e tornando-se obediente até à morte” (Ph. 2,6-9) e que Deus ressuscitou (Ac.10.40) para nos dizer o Projeto de Deus (o Reino) e para termos n’Ele o nosso “Caminho” de conversão.
14 – O segundo tempo é o tempo apostólico o da autêntica tradição apostólica, do testemunho sinodal das comunidades cristãs originárias, nos dois primeiros séculos, e alguma extensão ao século III, sem hegemonias, sem especulações teológicas, sem códigos de exclusão, sem preocupações de poder social, de honra, e de prestígio, mas com a preocupação comunitária e fraterna de conversão mútua. As sete epístolas autênticas do apostolo Paulo são o testemunho autêntico e contemporâneo desse tempo. São aliás o único testemunho escrito, contemporâneo e não anónimo, nem pseudográfico. A sinodalidade era a sua estrutura constituinte. Nesses tempos, os cristãos criam, confiavam nos testemunhos, e não estavam submetidos ao medo das especulações dogmáticas, nem do poder jurisdicional canónico eclesiástico, que não encontra fundamento na tradição apostólica, excede-a e perverte-a, é contingente, contextuado e conjuntural.
15 – O terceiro tempo, o eclesiástico, distingue-se pela progressiva perversão da sinodalidade, restringida a uma elite clerical, com a progressiva institucionalização hegemónica das comunidades, sob a égide dos membros mais cultos e socialmente mais prestigiados por critérios mundanos da honra e do prestígio (1Tm.3,1), que se auto-sacralizaram e se auto-sacerdotalizaram, criando uma ordem ministerial sacra e sacerdotal, sem fundamento apostólico, por influência do sacerdócio do Antigo Testamento e dos sacerdócios pagãos. Representou um grave desvio do testemunho evangélico e apostólico, no seu “sensus fidei”, na sua forma, no seu estilo e, na sua estruturação institucional. A equivocada “Tradição Apostólica” (Hipólito de Roma? – c.217) é o primeiro escrito desse tempo, prolongado até aos nossos dias. A sua incoerência com o Evangelho e com a autêntica Tradição Apostólica originária afasta-nos das instituições eclesiásticas, sejam elas católicas, protestantes, ortodoxas ou outras, de um cristianismo aprisionado por políticas, por etnias, por culturas, burocratizado e ritualizado, num contra-testemunho do Evangelho.
16 – O “cristianismo” católico, como o da miríade de Igrejas protestantes e de Igrejas Ortodoxas, apresentam-se como uma Babel de jurisdições, mais presas aos seus discursos teológicos, às suas liturgias, aos seus cânones, à suas tradições mundanas, às suas identidades étnicas, regionais, ou nacionais, aos seus prestígios sociais, culturais e mediáticos, do que à simplicidade e unidade da prática discreta das Bem-aventuranças, à unidade da única oração deixada por Jesus e ao despojamento radical que Jesus testemunhou e nos ensinou, pelos apóstolos. A razão da pluralidade (tantas vezes belicosa) destes “cristianismos” está na fuga à unidade simples do sínodo de base, não hegemónico, para aprender o “viver cristão”. A unidade universal do “simples homem” que era Jesus, mesmo sendo de “condição divina” perde-se nos discursos e nos rituais. Sínodos de base eram as discretas comunidades originárias.

17 – As comunidades originárias eram constituídas por quem procurava aprender, como era o “viver cristão”, o “Caminho”, mutuamente e em comunidade fraterna, para as suas relações quotidianas. De início, nem livros tinham. Foram a origem dos livros. Recebiam testemunhos, e testemunhavam factos relativos a Jesus e aos apóstolos, sem especulações teológicas. Apóstolos não eram só os “doze”, eram todos os que (e eram centenas), como Paulo e Barnabé, haviam podido testemunhar Jesus ressuscitado (Lc.24,35; 1Co.15,7). Não tinham sacerdotes ministeriais. Tinham carismas, que reconheciam, para enriquecimento mútuo, numa certa ordem funcional regida por um “presidente” (bispo ou presbítero), eleito pela comunidade, mas não sacerdote. Não precisavam de templos nem de altares. A Eucaristia não era meramente simbólica, era uma participação comunitária em autêntica refeição, em memória da Ceia do Senhor, certos da Sua presença, para uma verdadeira fraternidade, sem hegemonias, sem que uns se sobrepusessem aos outros.
18 – Se as comunidades originárias dos dois primeiros séculos representavam autêntica conversão ao “Caminho” e atraíam outros caminhantes, em várias partes do mundo, convertendo o mundo, sem estruturas sacerdotais, sem especulações dogmáticas, sem pompas rituais, sem poder social, por que razão, para ser cristão e testemunhar os critérios do Caminho, teremos, hoje, de nos sobrecarregar com o que elas não necessitavam e que nos representam um contra-testemunho?
19 – O apóstolo Paulo, nas suas sete epístolas autênticas (as sete restantes com o seu nome são pós-apostólicas e já contêm alguns desvios) mostra-nos como seria o espírito sinodal das comunidades originárias. Particularmente os capítulos 12,13 14 da Primeira Epístola aos Coríntios. Paulo aí nos diz: «Todos vós podeis profetizar…para que todos sejam instruídos e encorajados» (1Co. 14,31); «Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para utilidade de todos» (1Co.12,7), «todos fomos batizados num só Espírito para sermos um só corpo, quer sejamos judeus ou gregos, quer escravos, quer livres» (1Co.12,13); «os espíritos dos profetas [todos vós podeis profetizar] estão submissos aos profetas» (1Co. 14,32). Este era o modelo sinodal, especificamente cristão, não hegemónico.
20 – Este modelo originário funcionando nas relações entre as várias comunidades, correspondia a “comunidades de comunidades em construção” um modelo institucional evangélico, não hegemónico, , modelo para a conversão das instituições mundanas, hegemónicas, de dominação de uns sobre os outros. Este modelo rompeu-se pela tentação hegemónica, sob os critérios da “honra” e do “prestígio” (cf. 1Tm.3,1; 5,17) que atingiu os dirigentes (bispos / presbíteros), letrados, envolvidos em polémicas doutrinais e filosóficas. As “epístolas pastorais” (pós-apostólicas) manifestam esse contexto de polémicas doutrinárias, com uma clara inflexão patriarcal e autoritária, já tendencialmente segregadora, com a exclusão das mulheres (cf. 1Tm.2,12). As teologias especulativas sobrepuseram-se à simplicidade do Evangelho. A hegemonia clerical até facilitou a permanência de um “cristianismo” impregnado de heranças de cultos pagãos.
21 – As especulações teológicas favoreceram uma sinodalidade elitista, dos dirigentes, bispos e presbíteros, mais letrados e mais prestigiados, que acabaram por dominar as comunidades, com formulações de uma unidade de fé, mais doutrinal e formal que prática e comportamental, mais formal que vivida. Ao longo dos séculos III e IV esta tendência acentuou-se, originando uma nova ordem episcopal e presbiteral, que, sob influência das conceções sacerdotais judaicas e das religiões pagãs, se auto-sacralizou e auto-sacerdotalizou, dividindo o Povo de Deus em dois estatutos (não dois carismas), o dos clérigos e o dos leigos, ao arrepio de qualquer séria fundamentação evangélica e em oposição ao Espírito que conduzia as comunidades apostólicas. Nascia, por meros fatores humanos, não evangélicos, uma hierarquia de poder (jurisdição) doutrinal, disciplinar e litúrgico, relegando a maioria dos cristãos para a mera submissão, sem voz ativa, sujeita ao risco da humilhação e da excomunhão canónica.

22 – Esta nova ordem hegemónica aproximou o poder clerical (e o seu mundo eclesiástico) dos poderes mundanos, políticos (imperiais), aristocráticos e económicos, deixando-se modelar por eles, e até em concorrência com eles. A História dos Concílios (até ao Vaticano II), dos Estados Pontifícios e das eleições Papais é esclarecedora. Nessa promiscuidade se deu a intervenção de imperadores em questões de Fé (ex. Niceia e Éfeso), a intervenção em guerras, a violência das Cruzadas, a violência das Inquisições, a ostentação e exibição litúrgica e não-litúrgica de poder, nas vestes, nos tratamentos aristocráticos, nos palacetes, nas diplomacias, tudo isso constituindo contra-testemunho de Quem, sendo de «condição divina…esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo… apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, e tornando-se obediente até à morte” (Ph. 2,6-9), contra-testemunho dos humildes apóstolos e das humildes comunidades originárias que revolucionaram os comportamentos das sociedades pagãs.
23 – Hoje, em consequência da tradição eclesiástica, temos de constatar uma distinção factual entre um “mundo cristão” e um “mundo eclesiástico” não coincidentes. Hoje os cristãos que se envolvem e se enquadram no “mundo eclesiástico”, nas instituições eclesiásticas, são uma minoria tendencionalmente decrescente. A maioria dos que se identificam como cristãos afasta-se das instituições eclesiásticas. O desfasamento entre “mundo cristão” e “mundo eclesiástico” cresce e não parece reversível. Acontece nas Instituições católicas e nas instituições das demais confissões cristãs. Este facto é tanto mais escandaloso quanto a pessoa de Jesus e o seu projeto evangélico (na simplicidade da sua revelação e testemunho) são universalmente compreendidos como ideal supremo da convivência humana. O desfasamento só se resolve com os critérios originários, não com outros, por mais luminosas, inteligentes e belas que sejam as suas teologias.
24 – Apesar de todos os contra-testemunhos, o Espírito de Jesus não deixou de estar presente e não deixou de ter quem O procurasse seguir no interior das estruturas eclesiásticas, obedecendo-lhes de boa e generosa fé, ainda que a sua natureza hegemónica não tenha fundamento evangélico. Os movimentos eclesiásticos das últimas décadas, desde o Vaticano II, múltiplas reações laicais justas e vigorosas e, particularmente agora, com os gestos e intuições do Papa Francisco, são claros os sinais da presença do Espírito de Jesus entre nós, a exigir-nos uma profunda conversão estrutural, cujo modelo só encontramos na tradição originária, não hegemónica, basicamente sinodal.
25 – Aliás, esse modelo sinodal de aprendizagem do “viver cristão é o que também corresponde às aspirações mais profundas da condição humana, e das aspirações contemporâneas: o máximo de autonomia (liberdade) individual possível, no máximo de autonomia (liberdade) comum possível, que só numa verdadeira relação interpessoal, em comunidade não hegemónica, se pode realizar. Mundanamente, diremos que é impossível.
26 – Que fazer, então, para sinodalizar as Igrejas? – O Caminho só pode seguir o despojamento d’Aquele que sendo de «condição divina…esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo… apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, e tornando-se obediente até à morte” (Ph. 2,6-9).

27 – As estruturas eclesiásticas das Igrejas tomaram, historicamente, o caminho inverso ao de Jesus. Da sua contingência humana alcandoraram-se a uma auto-sacralização e auto-sacerdotalização, absolutizando os seus discursos teológicos e as suas normas de ordenação hegemónica, dividindo e dominando o “Corpo de Cristo”, o Povo de Deus. Necessitamos que se despojem e se convertam à simplicidade e pobreza dos critérios originários.
27 – Impossível? Loucura? Não digamos isso a Quem «de condição divina…se apresentou como simples homem». Não lhe digamos, também nós: «não temos razão de dizer que és um samaritano e que estás louco?» (Jn. 8,48).
28 – Estamos conscientes de que a realidade do cristianismo não é apenas o da sua visibilidade, é, sobretudo, a realidade invisível de todos os cristãos de boa vontade, cujos corações só Deus conhece e avalia. É, também, a realidade dos que crendo em Jesus e no seu Espírito e que sem pretensões de poder, nem de prestígio, estão sujeitos a serem isolados, talvez a serem excomungados, porque se escandalizam pelo que vêem e ouvem.
29 – Talvez se escandalizem de que seja possível representar Jesus como um Chefe de Estado, senhor de um território estatal, de uma diplomacia estatal, e de controlo da pirâmide hierárquica do poder clerical, de um aparelho burocrático de milhares de burocratas, de um controlo arquivístico, efémero e inútil para a eternidade do «Reino». Talvez se escandalizem de que seja possível ver Jesus como senhor de esplêndidas basílicas, magníficos palácios, museus, instituições financeiras e outras grandiosidades. Talvez se escandalizem de que seja possível ver os que se proclamam representantes de Jesus (Aquele que «sendo de condição divina…se apresentou como simples homem») e dos apóstolos, ciosos dos seus tratamentos nobiliárquicos, dos seus títulos hierárquicos, paramentados com pomposos e coloridos (sagrados) paramentos e anacrónicas mitras. Talvez se escandalizem de que seja possível ver a imagem de Jesus humilhado na Cruz alçada em pomposos rituais de aparatosas liturgias, ou como báculo de poderio pontifical, ou exibida como sinal de poder hierárquico.
30 – Mais que resolver a ordenação (clericalização) de mulheres, e de as nomear para cargos clericais, mais que resolver a obrigação do celibato dos padres, mais que apertar as regras de seleção dos clérigos, solteiros ou casados, mais que descentralizar jurisdições e outras normas canónicas, mais que tudo, necessitamos de não ter medo do despojamento de tudo o que não tem fundamento evangélico, só possível pelo testemunho da simplicidade da aprendizagem originária, em comunidades não hegemónicas, “sínodos de base”.
31 – Estimulem-se as comunidades de base, desclericalizadas, onde a preocupação seja a aprendizagem mútua da “agapê” nas convivências concretas do nosso quotidiano, sabendo que Ele alí estará: «onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18,20). Cremos n’Ele? Então criemos “sínodos” nas nossas redes de convivência. Assim seremos “igreja”.
Um exilado das Igrejas, que quer seguir o Caminho e “caminhar junto”.
José Veiga Torres, nascido e batizado na paróquia de Santa Maria Maior, da cidade de Viana do Castelo, a 30 de agosto de 1930, reside em Coimbra. Contacto: joseveigatorres@sapo.pt.