Justiça e compaixão: a urgência de um diálogo
Nas margens da filosofia (VI)
“Quem julga as pessoas não tem tempo para amá-las.”
(Madre Teresa de Calcutá)
De há alguns tempos para cá o português Miguel Duarte tem sido notícia. Pela televisão, imprensa e redes sociais, sabemos que sobre ele recai a acusação de ter salvo refugiados sem documentos nem licença de desembarque.

Miguel Duarte numa das acções do navio Juventa, resgatando pessoas em perigo. Foto © Rita Gaspar
A Itália insurge-se contra esta actuação e ameaça-o com um processo que poderá levar a alguns anos de cadeia. A acusação é a de que abusivamente ele presta socorro a emigrantes indocumentados que procuram guarida em terra firme. Penso que a melhor explicação para esta conduta foi dada pelo próprio, ao afirmar que quando alguém lhe pede socorro se apressa a ajudá-lo sem lhe perguntar se tem identificação ou licença de desembarque.
Relativamente a este caso as opiniões dividem-se. Há grupos (nos quais me incluo) que lhe dão razão quanto às prioridades estabelecidas. Outros, no entanto, consideram que actuou à margem da lei e que, como tal, deverá ser punido. É um caso paradigmático em que se defrontam duas virtudes éticas igualmente relevantes – a justiça e a compaixão.
No que respeita à filosofia o diálogo entre compaixão e justiça nem sempre tem sido encarado pacificamente. E exemplifico esta atitude com duas filósofas contemporâneas: Hannah Arendt e Miriam Revault d’Allones. A primeira encara a política como a vivência dos homens uns com os outros e considera a justiça como uma exigência do foro público. Para ela, a compaixão pertence ao foro privado. Como tal, critica a sua interferência na esfera pública pois, se a valorizarmos como virtude política, podemos identificar pobreza e virtude, o que inevitavelmente levará a uma atitude de passividade. Compadecermo-nos é aceitar como natural uma situação e nada fazermos para que esta se altere e corrija. Arendt dá à compaixão um estatuto de virtude individual. Assistimos a uma irrupção massiva dos pobres e dos deserdados na cena política, com o perigo desta relevar a dimensão compassiva, sendo a justiça apagada em prol da caridade. A filósofa alemã sustenta que a compaixão é irrelevante na política, afirmando mesmo que ela lhe é prejudicial: “Não nos é possível analisar aqui os prejuízos que a compaixão causou às revoluções modernas através dos esforços para melhorar a sorte dos pobres em vez de instaurar a justiça para todos. (…) A humanidade dos humilhados e ofendidos é absolutamente irrelevante em termos políticos.”[1]A nossa luta deverá pois orientar-se em prol da justiça.
Também a filósofa francesa Myriam Revault d’ Allonnes se interessou pelas consequências nocivas da compaixão quando transpostas para a política, considerando-as perigosas por poderem transformar-se em piedade fácil, anestesiando revoltas contra as injustiças e impedindo a construção de um mundo mais equitativo: “Falar de sofrimento, de miséria, de infelicidade, deixando de falar de injustiça e de desigualdade, é abrir caminho para um tratamento compassivo que não esclarece politicamente o abandono individual ou colectivo.”[2]Para Revault d’Allones, assistimos hoje a uma hipertrofia da dimensão compassiva. É um estado de coisas que prejudica uma governação que pretenda ser justa. A compaixão é ambivalente pois por ela encaramos os outros como carentes, classificamo-los como destituídos e aprisionamo-los na sua situação de assistidos, instaurando uma política de caridade. A justiça desenrola-se no espaço público e, neste, a questão social não pode ser ignorada. A cidadania impõe como requisitos certos direitos como o direito ao trabalho; o direito à educação; a segurança na saúde; a dignidade das reformas; o respeito pelas diferenças culturais e religiosas, numa palavra, o respeito pela dignidade do ser humano.
Contrariando esta aproximação de compaixão com passividade, sublinhamos as virtualidades dinâmicas da compaixão, na medida em que ela nos leva a agir. Por isso discordamos da identificação entre compaixão e condescendência e negamos que a primeira seja incompatível com a justiça. Ser compassivo constitui um primeiro degrau para uma actuação eficaz e interventiva. O olhar compassivo sobre o outro é indispensável para estabelecermos com ele uma relação de empatia. Esta, desencadeia o desejo de alterar o status quoe leva-nos a personalizar as injustiças, o que é uma motivação eficaz, ou seja, um estímulo para lutarmos por um mundo melhor. Somos responsáveis pela criação de uma nova ética que satisfaça os desejos legítimos de todos, em ordem à vivência plena da dignidade humana. Consequentemente, as leis que criamos devem ter presente o facto de lidarem com seres concretos, dado que as instituições integram pessoas.
Na bula Misericordiae Vultus, o Papa Francisco recorda a parábola do servo iníquo (Mt, 18,22). Por ela percebemos como a misericórdia e a compaixão devem prevalecer sobre a justiça. Deus, porque é Deus, pode ir além da justiça, e fá-lo frequentemente. Para nós humanos, fica a tarefa difícil de encontrar o equilíbrio entre justiça e compaixão. Aceitando o preceito evangélico, “não julgueis e não sereis julgados” (Lc, 6,37), resta-nos confiar na compaixão divina, orientando as nossas acções de modo a merecê-la, ou seja, abrindo-nos a toda a humanidade, com particular atenção para aqueles que sofrem.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é Professora Catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (http://luisarife.wix.com/site; luisarife@sapo.pt)
Notas
[1]Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios, Lisboa, Relógio d’Água, 1991, pg.24.
[2]Myriam Revault d’Allonnes, L’homme Compassionel, Paris, Seuil, 2008, p.64.
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