
Terras berberes do Médio Atlas. Foto © Pedro Mendo.
Num dia de Outono do ano passado… Orientava um retiro espiritual em Ouirgane, no Alto Atlas, a 40 quilómetros do [local onde se localizou agora o] epicentro do terremoto [que atingiu Marrocos na noite de sexta-feira, 8 de Setembro].
No final do dia, partimos, eu e as minhas estagiárias. Ao todo, sete mulheres e eu, numa caminhada… Na curva de uma colina, cruzámo-nos com uma velha amazighe que vigiava as suas cabras e cantava músicas melancólicas.
As meninas adoraram e quiseram conversar com ela. Ela aceitou e eu ia traduzindo… Depois de alguns minutos de conversa, ela convidou toda a gente para tomar chá na casa dela, no topo de uma pequena colina.
Ela preparou o chá e na mesa colocou pão caseiro, amlou [pasta de amêndoas esmagadas com óleo de argão], mel e nozes de Imlil… As raparigas ficaram espantadas com a generosidade desta velha mulher. Então ela começou a falar sobre a sua vida difícil, mas feliz.
Tratou as raparigas como se fossem as suas próprias filhas… Tocava-lhes nos cabelos como se as conhecesse desde sempre e dava-lhes conselhos de beleza para terem “olhos de anjo”. “Porque muitas vezes o Amor passa pelo olhar”, dizia ela.
O sol começava a pôr-se e pedimos licença para sair e Lalla Aicha acompanhou-nos até ao caminho no sopé da colina por cerca de cem metros. Antes de a saudar para partir, naturalmente as meninas cotizaram-se e entregaram-lhe 2.000 dirhams…
Lalla Aisha recusa categoricamente… E diz-lhes: “Posso ser pobre comparada com vocês, mas não sou uma mendiga… Cumpri o meu dever como os meus antepassados fizeram desde o início dos tempos: alimentar os viajantes que passam à beira de casa”.

Depois, volta-se para suas cabras… Chama a mais velha de entre elas, a quem chama: Taskurt…
Taskurt vem para junto dela e todas as outras cabras a seguem e Lalla Aicha orienta o pequeno rebanho para um pequeno cercado. E vai para casa e fecha a porta…
As raparigas, quanto a elas, ficaram sem palavras diante da generosidade e dignidade desta velha mulher. No caminho de volta, um silêncio monástico abateu-se sobre o grupo…
À noite, ao jantar, explico-lhes a mentalidade dos Amazigues e o seu sentido inato de generosidade e de partilha. E que o facto de querer retribuir a generosidade é um insulto… Daí a reação de Lalla Aicha.
Ontem à noite, uma das raparigas que participou no retiro em Ouirgane e que é alto quadro de uma multinacional telefonou-me. Para ter notícias de Lalla Aicha depois do sismo…
Como Lalla não tinha telefone, resolvi ir a Ouirgane hoje para ver se ela ainda está viva…
Chego a Ouirgane… Procuro o caminho com dificuldade… Deslizo entre as árvores e de repente aparece a colina de Lalla Aicha, mas não a casa… O meu coração palpita descontroladamente… Disse a mim próprio que certamente teria morrido… Aproximei-me novamente e não havia mais sombra de dúvida: a casa está no chão e as cabras ainda lá estão, enterradas sob os escombros… Deixei escapar uma lágrima… Sentei-me numa pequena pedra para meditar e rezar por este anjo terrestre: Lalla Aicha…
Fico alguns minutos com os olhos fechados… De repente, sinto alguém bater-me no ombro esquerdo… Abro os olhos. É um homem de certa idade…
“Não é, com certeza, da nossa aldeia. Posso ajudá-lo?…” Falou em darija.
Respondo em berbere: “Vim ver Lalla Aicha.”
Ele: “A casa dela está destruída e o seu pequeno rebanho está dizimado… Mas Lalla Aicha está viva.”
Não acreditava no que ele dizia…
Depois acrescentou que na noite em que houve o sismo ela estava na casa da filha, na base da aldeia, e a casa de lá aguentou…
O milagre funcionou para esta velha mulher… E quando contei o seu destino a todas as raparigas que ela acolheu em casa com tanto carinho e generosidade, elas decidiram unanimemente que financiássemos juntos a reconstrução da sua casa e a compra de um novo rebanho…
Amanhã encontrar-me-ei com Lalla Aicha para lhe transmitir esta boa notícia…
E como diz o ditado: “Tudo passa… e isto também acabará por passar!”
Azul!*
*“Bom dia”, em tamazigue.