Face à agitação provocada pelas infeções covid-19 e pelas respetivas mortes em lares de idosos, ou “estruturas residenciais para pessoas idosas”, torna-se imperiosa a assunção das nossas responsabilidades coletivas. Para não alongar o texto, limito-me, por ora, a elencar três omissões graves, que são fundamentais e comuns a outros problemas:
1. Ainda não se fez a estimativa da despesa, pública ou não, resultante dos direitos sociais consagrados nos artigos 63º. a 72º. da Constituição da República [artigos respeitantes à segurança social e solidariedade, saúde, habitação e urbanismo, ambiente e qualidade de vida, família, paternidade e maternidade, infância, juventude, cidadãos portadores de deficiência e terceira idade].
Os diferentes governos têm feito o que está ao seu alcance para se concretizarem esses direitos – visando quase sempre as melhorias possíveis – mas falta a visão de conjunto assumida pelo Parlamento e por cada governo. E convém não esquecer que, além dos problemas das pessoas mais velhas, existem inúmeros outros.
2. Não se avalia anualmente a situação social do país e, portanto, não se assumem as responsabilidades coletivas face aos problemas de maior gravidade como os relativos à pobreza grave, aos “sem abrigo”, às pessoas com deficiência, à habitação sem o mínimo de condições, à falta de cuidados médicos, à impossibilidade de acesso ao sistema educativo… Esta omissão acha-se ligada a outras como, por exemplo:
(a) A não difusão de estatísticas sobre os casos e problemas socais acompanhados pelos serviços de atendimento do Estado, central e autárquico, das instituições particulares e dos grupos de voluntariado;
(b) O facto de a “Carta Social”, publicada regularmente pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, incluir dados relativos aos equipamentos e serviços sociais, mas não incluir os que respeitam às necessidades não atendidas;
(c) O não cumprimento, pela Assembleia da República, de duas resoluções que adoptou em 2008 sobre a pobreza (Resoluções nºs. 10/2008, de 19 de março, e 31/2008, de 21 de julho);
(d) A falta de reconhecimento, pelo “Presidente da República”, do não “regular funcionamento das instituições democráticas” (artigo 120º. da Constituição), com base nas graves situações de pobreza e noutros problemas sociais; em contrapartida, a Assembleia da República já declarou “(…) solenemente que a pobreza conduz à violação dos direitos humanos (…)” (Resolução supramencionada nº. 31/2008);
3. Predomina uma conceção hoteleira e hospitalar da proteção na velhice, em prejuízo da conceção humanista integral. Se predominasse estoutra conceção, existiria um processo de desenvolvimento integral, em cada localidade, ponderando as características da respetiva população, a evolução previsível, a consonância das dimensões económica, social, cultural e ecológica, o desabrochamento de potencialidades e a satisfação de necessidades…
É claro que o preenchimento desta lacuna cheira a utopia; mas acontece que, pelo menos desde os anos sessenta do século passado, abundam estudos e experiências a seu favor que nunca foram levados bem a sério. Muito do que se falou, experimentou, estudou e publicou sobre o desenvolvimento comunitário, local, sociolocal, solidário…, a economia social e a solidária, as aldeias tradicionais, o desenvolvimento e o povoamento do interior do país, a ecologia, a renovação e humanização do espaço urbano, o “dar mais vida aos anos”… converge exatamente a favor de uma conceção da velhice bem diferente da que tem prevalecido.
Esta omissão acha-se ligada estreitamente a outras, como por exemplo:
(a) A inexistência dos planos de desenvolvimento económico e social, previstos nos artigos 90º. e 91º. da Constituição; faltando os planos de desenvolvimento do país, falta a devida integração dos de desenvolvimento local bem como um quadro de referência para o desenvolvimento de cada pessoa e de cada comunidade;
(b) A ausência de políticas centradas no desenvolvimento do setor cooperativo e social (artigo 82º. da Constituição). Este setor, verdadeiro espaço promotor de iniciativas pessoais e coletivas, de natureza socioeconómica, cultural, ecológica ou outra, tem o condão de ser acessível a todas as pessoas e a todas as atividades; além disso, pode contribuir decisivamente para o incremento da socieconomia, superando a dicotomia entre a esfera social e a económica;
(c) A prevalência da conceção egocêntrica e coisificada da morte, em prejuízo da sua inserção no processo vital permanente. Essa conceção não integra a morte individual nas mortes universais, e não a relaciona com as mortes verificadas permanentemente, em cada um de nós, desde o início da vida; tende para o tratamento das pessoas mais velhas como se estivessem condenadas à morte.
Perante as referidas três omissões de notória gravidade, é muito cómodo responsabilizar algumas entidades, públicas ou não, por eventuais anomalias graves, continuando a ignorar responsabilidades coletivas não assumidas.
Acácio F. Catarino é consultor social